A tartaruga-verde e o lagartinho-da-praia

Crônica S/A

Por Vicente Sá

O leitor sabe como é: o friozinho da manhã de maio, você enrolado no cobertor, na cama, torcendo para ninguém te ligar, e o telefone toca. Pois foi assim, o começo da sexta-feira. Era tia Walkiria, então, nem adiantava fingir que não ouvira, era melhor atender.Se arrume, tome seu café e se prepare. Temos visitas importantes e um serviço novo para você. Daqui a pouco eu te teletransporto aqui pra casa. Acelera aí.
Quem conhece a tia Walkiria entende porque eu, prontamente, me levantei e agi como se minha vida dependesse daquilo. É que, de fato, dependia.
Vinte minutos depois, eu estava na sala de minha tia bruxinha, olhando para uma tartaruga de mais de um metro e meio e uma lagartixa de poucos centímetros que, sentadas lado a lado no sofá, me encaravam como se nunca tivessem visto um poeta/cronista antes.
Olhei para os dois répteis e para minha tia e aguardei.

Este é Olívio III, a tartaruga-verde, e Ringo, lagartinho-da-praia. A tartaruga é descendente de uma família da nobreza de sua espécie e Ringo tem esse nome porque gosta muito do som dos Beatles e fica, igual baterista, balançando a cabeça o dia todo.
Permaneci calado e evitei sorrir, o caso, pelo tom de voz da tia, era muito sério.

Bom, eles vieram a Brasília para estudar o local onde pretendem, futuramente, fazer um protesto contra o desgoverno e o ministro antimeioambiente, que estão destruindo todas as defesas ecológicas criadas nos últimos anos e, agora, até o projeto Tamar. Você deve levá-los até a Praça dos Três Poderes e, depois, trazê-los aqui, até o meio dia, para almoçarmos juntos.
Antes que eu pudesse dizer alguma coisa, ela falou rispidamente:

E nem se atreva a me perguntar por que eu não faço isso. Você não tem ideia do que é preparar um almoço para três humanos e dois répteis.
Peguei a motinha amarela da tia, que possui um sidecar, aquele carrinho ao lado, que comportou perfeitamente Olívio III e Ringo, e fomos até nosso destino.
Passeamos pelo Congresso, Supremo Tribunal Federal e paramos na Praça dos Três Poderes, em frente ao Palácio, na hora em que manifestantes pediam o fim da inteligência, da educação e da ciência, a volta da Santa Inquisição, da bolsa caverna e do auxílio porrete.
Foi aí que, de supetão, Olívio III, que eu julgava estivesse calmo, tirou seu casco e ficou a balançar o órgão e o saco para os manifestantes, em um protesto que chamou a atenção não só dos repórteres da imprensa internacional, como assombrou e, ao mesmo tempo encantou, as falsas puritanas de camisa amarela.
Ringo, gargalhava se sacudindo e balando a cabeça aceleradamente e eu, sem graça, os chamava de volta para a motinha amarela.
No caminho de volta, Olivia III me pediu desculpas pelo gesto e, com voz triste, desabafou:

Vocês humanos, com raríssimas exceções, são muito tolos. Mas, estes aí são suicidas e parecem não saber, mesmo, o que é viver.
Pigarreou, arrumou a nadadeira esquerda e continuou:

A maioria dos humanos vive o tempo de Cronos, que é linear e nós, os animais, vivemos o de Kairós, que é viver a plenitude do momento, o tudo agora, sentindo cada gota, cada átomo e cada gesto. Como nós, animais, continuamos interligados ao todo, sentimos tudo.
Nicolas Behr, poeta e ecologista, passou buzinando ao nosso lado, mandando que fugíssemos rápido, pois alguns fanáticos estavam vindo atrás de nós. Seguimos Nicolas até sua casa e Olívio III, como boa tartaruga, tomou um banho no lago em frente. Ainda se enxugando, garantiu que já conhecia o trabalho do poeta de outros tempos.

Lá em Fernando de Noronha, onde moro, o “Iogurte com Farinha” já faz parte da alimentação do pessoal há muito tempo. Ergueu as nadadeiras e gritou: – O Nick é nosso! Iogurte eu traço!
Saímos da casa do poeta e seguimos, mais tranquilos, para tia Walkiria.
Antes de chegarmos, Olívio III declarou:

Temos que tirar estas criaturas do poder ou vamos todos perecer. Esta escolha insana que eles fizeram é um caminho oco e sem volta.
Já na casa de tia Walkiria, mesa com muitas folhas para os dois convidados e uma sábia lasanha à parmeggiana para mim, tia Walkiria e o Filósofo da Asa Norte.

Você não come mais carne, não é, Olívio? perguntou tia Walkiria.

Minha espécie, deixa de comer carne assim que atinge os 35 centímetros de casco. Ficamos mais sábios e vegetarianos. O Ringo come de tudo, mas também é chegado numa folha.
Antes de partir, eles se despediram e eu pude ouvir, pela primeira vez, a voz do Ringo:

Olha, lá em Santa Catarina, onde eu moro, nós ouvimos falar de suas crônicas e de seus leitores. Fala de nós e do que está acontecendo, nesta de Domingo. Veja se mobiliza sua gente para a nossa causa, que é, também, de vocês. E conta aí que eu aceito baquetas de madeira para tocar minha bateria na praia, ok? Elas têm que ser bem pequeninas. Podem mandar para tia Walkiria que ela me acha. Tchau.
Voltei para casa ainda impressionado com os acontecimentos do dia e, quando desci da motinha amarela, o galo Alfredo me gritou de longe:

Esqueceu de devolver a moto, vai levar bronca, de novo!
Fiz que nem ouvi. Alfredo tem essa mania de vir cantar de galo quando eu chego meio atrapalhado. Eu estava era enternecido, olhando para as duas mascarazinhas esquecidas pelo Olívio III e pelo Ringo no sidecar da moto.
Creio que estou mais emotivo ultimamente e que, se sobrevivermos a este desgoverno e à pandemia, sairei, senão mais sábio, pelo menos, mais humano.
Ah, a manifestação dos bichos vai ser uma marcha surpresa, por isso não sei a data. Mas é claro que vamos, não é?
Vicente Sá
PS: As Crônicas S/A, agora, estão sendo transmitidas pela Rádio Esplanada FM, todas as segundas feiras às 9 horas da manhã. Os leitores que quiserem ouvir minhas histórias pela minha voz devem acessar o site www.radioesplanadafm.org ou usar o aplicativo radiosnet.com. Até o próximo Domingo ou até amanhã

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Fonte Segura: Central de Jornalismo

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