Crônica S/A – Um cheiro de domingo ou o epitélio olfatório

Por Vicente Sá

O velho está sentado no quintal, quase como um pássaro pousado a comer migalhas do sol da manhã. A cadela, também idosa e também pousada ao seu lado, divide com ele o momento. O cheiro de um café sendo passado em um outro tempo invade as narinas dos dois e o velho bate levemente na cabeça da Amélia – este é o nome da cachorra – e diz bem baixinho, como se fosse uma senha antiga: – Era esse cheiro que nos faltava para iniciarmos a viagem, não é, Amélia?O neto, magro e de cabelos raspados de um lado só, senta-se ao lado do velho e mostra-lhe a tela do seu smartphone.- Vô, este cheiro do café da vovó é ótimo e me lembra quando eu era menino. Aqui, nesta matéria da BBC Brasil, uma pesquisadora, Cecilia Bembibre, diz que alguns cheiros estão desaparecendo. Tipo, alguns cheiros do seu tempo, que saiam de coisas que vocês faziam e que ninguém faz mais, estão em extinção. Deve ser “dramático” perder coisas que você tinha e agora nem pode lembrar mais, né? O avô concorda com um aceno de cabeça e um leve sorriso aflora em seus lábios cansados de palavras. O jovem está à vontade com seu amigo avô e continua:- É que um cheiro, gostoso ou não, pode trazer lembranças e até nos transportar ao passado, mas a lembrança em si não traz o cheiro. E, assim, como é que você, vovô, vai recuperar os cheiros de sua infância, por exemplo? Ou daquele baile na zona que você me contou? Aqueles perfumes não existem mais, as comidas que se faziam na cozinha eram outras, e até algumas bebidas daquela época sumiram.A brisa leve sacode os galhos das árvores próximas e Amélia deita a cabeça no pé do velho que ainda sorri para o neto, antes de falar:- É mesmo. Os cheiros, até mesmo os das pessoas, mudaram. Agora todo mundo cheira a desodorante e pressa. Você, e a maioria dos seus amigos, tem esse cheirinho de maconha que não sai desde os seus quinze anos e que eu acho bem gostoso. Os dois riem e o jovem bate na perna magra do avô com intimidade.O velho parece em dúvida, mas, logo, com um pigarro, mostra que se decidiu e torna a falar ao jovem:- Mas tem uma coisa que você não sabe. A recordação, pelo menos na minha idade, tem uma densidade maior e mais envolvente. Às vezes, ela nos traz, em detalhes, coisas que nem no momento vivido havíamos notado, ou, pelo menos, assim pensávamos. A cor dos brincos da mulher com quem dançamos, o sotaque arrastado do homem de chapéu numa conversa com o barman, ou o cheiro doce de uma dama-da-noite que nos escolta no caminho do rio. É como se vivêssemos tudo de novo e até melhor, porque não estamos nervosos e já sabemos como tudo ocorre.- Eu ainda não consigo lembrar os cheiros da minha vida, diz o jovem com uma inveja respeitosa. Em seguida comenta, com entusiasmo, tentando contagiar o avô:- Sabe vô, esta mulher, esta pesquisadora, ela está pensando em criar um museu de cheiros. Deve ser um passeio muito interessante e enriquecedor, cê não acha?O velho ajeita a boina azul, já gasta, mas que da qual ele tanto gosta, e diz: – Deve ser mesmo. E ainda mais para quem viveu, pois, as lembranças renascidas da olfação são as mais fortes. Tem vezes que temos dificuldade de retornar. Mas na maioria das vezes ficamos assim, como eu e Amélia, simplesmente passeando pelos cheiros do mundo. A brisa torna a bater, o silêncio se ajeita entre eles como um amigo antigo e eles não sentem falta de mais nada. Pelo menos até a hora que o cheiro da galinha assada os rodeia e a avó grita alegre chamando para o almoço.- Vô, e o epitélio olfatório lá do título da crônica?- Brincadeira de cronista. São as células dentro da cavidade nasal responsáveis por sentirmos os cheiros, só isso.

Vicente Sá Novo PS: As Crônicas S/A, agora, estão sendo publicadas nos portais – Central de Jornalismo – www.centraldejornalisamo.com.br e www.aultimafolha.com.br e transmitidas pela Rádio Esplanada FM, todas as segundas feiras às 9 horas da manhã. Os leitores que quiserem ouvir minhas histórias pela minha voz devem acessar o site www.radioesplanadafm.org ou usar o aplicativo radiosnet.com. Até o próximo Domingo ou até amanhã.ilustração – Carybé

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Fonte Segura: Central de Jornalismo

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