“A falácia descarada de Alexandre Garcia sobre a droga santificada por Bolsonaro” Wilson Gomes

A cloroquina e a fé do rebanho

por Wilson Gomes
Compartilhada por Central de Jornalismo

Bolsonaro não consegue ter um titular no ministério da Saúde na fase mais grave da pandemia.

Bolsonaro sequer consegue usar os recursos que o Congresso lhe autorizou a empregar para salvar vidas durante esta interminável crise de saúde pública, ao ponto de ter sido solicitado a dar explicações ao TCU por tão espantosa atitude.

O presidente não conseguiu nem mesmo manter-se em isolamento social, para dar exemplo ao país, nas semanas em esteve infectado com o Sars-Cov-2.

Tantas fez o moço que assim o descreveu a jornalista Vera Magalhães: “O presidente passeou de moto e sem máscara, cumprimentou garis e mostrou caixa de hidroxicloroquina para as emas do Alvorada. Pode parecer uma piada, mas não: esse foi o dia do presidente em isolamento”. Rá!

Na verdade não só parece como é uma piada. É tudo uma piada de mau gosto.

Por pavor do PT e desprezo à política, os brasileiros resolveram eleger e empossar uma piada como presidente da República.

Devem ter achado que estariam punindo alguém, os políticos em geral e o PT em particular, mas finalmente se revela que estavam gostosamente pregando uma peça em si mesmos e infligindo-se uma autopunição.

Antes disso, correu o mundo uma foto do mandatário maior da República, segurando com as duas mãos uma caixa de cloroquina sobre a cabeça, diante de seguidores devotos e compungidos no que parecia uma missa campal no gramado do Palácio do Planalto.

Quem está acostumado à missa católica, sabe que o gesto copiou o momento do ritual litúrgico, depois da consagração do corpo de Cristo, em que a hóstia é mostrada aos fiéis enquanto o sacerdote profere solenemente “eis o cordeiro de Deus, aquele que tira o pecado do mundo”.

Pois “eis a cloroquina divina, que tira a Covid do mundo”, repetiu o grão sacerdote do bolsonarismo, para a adoração da sua igreja.

Claro, se você é um sujeito razoável e sensato, não estará entendendo por que a qualquer pergunta sobre o que fazer durante a pandemia se obtém de Bolsonaro uma única resposta: tomem cloroquina.

E, o que é pior, vai considerar incrível como tem gente que acredita em cloroquina, ivermectina e hodroxicloriquina como soluções mágica para a Covid-19, contra a OMS e toda a ciência médica disponível.

Mas, meus caros, as pessoas acreditam em alma imortal, reencarnação e em inferno, por que não acreditariam em pseudofármacos só porque a ciência os nega?

Mas, professor, o que tem a ver religião com cloroquina? A fé, meus amigos, a crença.

O bolsonarista radical é hoje um sujeito com tamanha fé no seu líder que é capaz de acreditar no que ele diz mesmo que o conteúdo da sua crença seja absurdo e até por isso mesmo. Credo quia absurdum, já dizia a máxima de Tertuliano.

Se Bolsonaro trocasse cloroquina por creolina ou jujubas, a crença dos seus seguidores mais radicais mudaria automaticamente de conteúdo, mas o suicídio intelectual e o fervor dos crentes seriam o mesmo.

E como em toda seita, há o pastor do rebanho, há os que compartilham com ele o sacerdócio e há os seus profetas.

Alexandre Garcia, um ex-jornalista convertido de primeira hora ao bolsonarismo, estreou na CNN Brasil esta semana, declarando ser Bolsonaro a comprovação científica de que a cloroquina funciona e que “seus colegas repórteres” só falam mal da droga santificada porque alguém lhes manda dizer isso.

Alexandre Garcia gosta de dar-se ares de um homem logicamente refinado e culto, quando a sua principal habilidade consiste em torcer ou esculpir os dados até que eles pareçam se encaixar com plausibilidades nas suas opiniões preconcebidas.

O “raciocínio lógico” usado por Garcia para “provar cientificamente” que a cloroquina é a cura da Covid-19 que os pagãos do mundo não querem que seja do conhecimento de todos, é o fato de Bolsonaro ter tomado o remédio e sobrevivido.

Só que isso que ele chama de lógica é geralmente refutado no primeiro dia de aula de Falácias Argumentativas.

É uma falácia descarada, para dizer o mínimo. É como dizer que uma vez que quando o galo canta, o sol nasce, é o canto do galo que faz o sol nascer. É ridículo.

A estatística, que não costuma fazer escolhas políticas, diz que a taxa de letalidade do Sars-Cov-2 no mundo é de cerca de 2% em média.

Quer dizer que se todos os infectados tomarem água de coco gelada com abará é provável que 98% se recuperarão, mas se trocarem o delicioso medicamento por caldo de cana e pastel de feira o milagre será exatamente o mesmo.

No caso do Brasil, a taxa de letalidade, uma das mais altas do mundo, está em torno de 7%.

A notícia deveria ser, então, que pelo menos 5% dessas mortes poderiam ter sido evitadas, se quem governa o país tivesse adotado as políticas públicas testadas e comprovadas como eficazes em toda parte.

Mas não, no estilo Garcia de jornalismo tribal teríamos o seguinte comentário: “A prova científica da competência do Ministério da Saúde de Bolsonaro é que estamos curando 93% dos infectados pela Covid-19”.

O mundo está tão louco que a posição ideológica das pessoas passou a orientar decisões com relação a que remédio tomar, se usamos ou não máscara em público, se vacino ou não os meus filhos.

A modernidade consistiu exatamente em vetar que a religião pudesse exorbitar, quer dizer, sair do ambiente onde os crentes precisamos dela, a saber, na nossa relação com o sobrenatural, com a morte e com o sentido da existência.

Para as demais necessidades da vida temos outros recursos, como a ciência, a política e a economia. A extrema-direita, entretanto, transformou-se em uma nova religião civil: o seu sumo sacerdote é considerado infalível em matéria de política, economia e, vejam só, medicina e saúde pública.

Deus se apiede de nós.

Wilson Gomes é doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade de Comunicação da UFBA e autor de A democracia no mundo digital: história, problemas e temas (Edições Sesc SP)

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Fonte Segura: Central de Jornalismo

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