Diário da Quarentena-Se minha casa falar, vou processar a Tramontina

Por Caco Schmitt

Jornalista, roteirista e diretor. Trabalhou na TV Cultura/SP como diretor e chefe da pauta do jornalismo; diretor na Agência Carta Maior/SP e na Produtora Argumento/SP. Editor de texto no Fantástico, TV Globo/SP. Repórter em vários jornais de Porto Alegre, São Paulo e Brasília.


A pandemia mudou o mundo, mudou a maneira das pessoas encarar a saúde, mas não muda a propaganda e a publicidade. Tenho visto e ouvido cada comercial desde o começo da quarentena… Banco querendo ser bonzinho, frigorífico fazendo filantropia, musiquinha melosa, todo mundo se metendo a filósofo e humanista nos textinhos! Novo normal, normalzinho, todo mundo será bonzinho daqui pra frente, o coronavírus veio nos ensinar a sermos o que deveríamos ter sido e não fomos… Mas nenhuma bate a campanha da Tramontina, cuja peça abre assim: “ninguém tem passado tanto tempo com você quanto eu, a sua casa”. Claro, né, estou há 150 dias em quarentena… Eu e milhares de pessoas estamos passando o maior tempo possível em casa, sem ir a bar, teatro, cinema, visitar parentes e amigos, aí os criativos têm essa grande sacada! E, no comercial que dá voz à casa, segue o discurso publicitário de quem, certamente, não assume a rotina de manutenção da própria casa: “eu tenho visto tudo que você tem aprendido nesse nosso tempo juntos”… Além de gozar da minha cara, agora é mais um a me espionar, não bastasse o Facebook, o instagram, as operadoras de celular, a CIA, NSA, ETC.
Eu escuto rádio o dia inteiro e, desde que o comercial da Tramontina foi ao ar, coisas estranhas começaram a acontecer aqui em casa… Uma atividade paranormal sem igual. Posso até listar. Quando a cebola, já sem a casca, saltou da tábua, correu pela sala e se escondeu em baixo do sofá, gritei: “assim não dá!” Ontem foi a cenoura que escapuliu por entre meus dedos, pulou para a mesa e dela lançou-se, desesperadamente, na direção do piso frio da área dos fundos, quase batendo a cabeça na base da churrasqueira. Agora há pouco, uma folha de alface americana ousou fugir do garfo, pegou carona com uma golfada de vento e se escondeu sob a mesa da cozinha. O que está acontecendo, perguntei cá comigo. Até o dente de alho, meu velho amigo, tentou suicídio na pia. Será a revolta dos vegetais? Reflexo de 150 dias de isolamento? Eis que, o lavador de vegetais, repetindo os estranhos movimentos, igualmente voou longe, quase na porta da sala… Os pratos no escorredor de louça estão se mexendo como nunca haviam feito e uma das gavetas com talheres tentou me matar. Ao leve toque de mão para abri-la, ela se lançou assustadoramente na minha direção, espalhando pegador de massa, escumadeira, amassador de alho etc. Escapei por pouco… Pra completar o quadro, o fio do carregador do celular, pelo velcro, se agarrou na minha perna, tentando impedir que eu o retirasse da tomada…
Já andava desconfiado dos ruídos noturnos pela casa: estranhos estalos vindo da região do freezer que comprei em março para resistir ao colapso no abastecimento. Nunca havia tido um, agora sei que ele reclama do frio à noite! O refrigerador frost free, então, já sabia que estala mais que junta de velho ao sentar, mas freezer? Bom, nem vou falar dos tremores nas portas e janelas quando passa lá fora um pesado caminhão levando algo ainda mais pesado. Até o espirro do vizinho já tô achando que é o lavabo resfriado… Depois de tanto tempo recolhido, a convivência com os vegetais e certos objetos da casa está complicada. Agora, só falta a casa falar, seguindo a orientação da Tramontina: “Escute sua casa!” Moral da história: ou a vacina vem logo, ou eu (e muita gente) vou começar a conversar com portas e janelas…

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Fonte Segura: Central de Jornalismo

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