O homem que restaurava filmes

Por José Sérgio Rocha
Compartilhado por Central de Jornalismo

Entre meados dos anos 1970 e o final daquela década, o Rio de Janeiro tinha alguns cineclubes. O mais importante era o Gláuber Rocha, em Santa Teresa. As poucas reuniões do movimento cineclubístico liderado por Marco Aurelio Marcondes eram realizadas lá, quando realizadas.

Os outros eram o Cineclube do Leme (que funcionava na Igreja da Rua General Ribeiro da Costa), o Macunaíma (no Auditório da ABI), o Cineclube Grande Otelo (no Morro do Salgueiro), uma ou duas pequenas salas em universidades e o Cineclube Adhemar Gonzaga, na Abolição.

Éramos poucos e, como no samba do portelense Chico Santana: “Havia um traidor entre nós”. Sim, tão pouca gente, como é que as notícias chegavam ao DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), que logo tratava de proibir? Infelizmente nunca soubemos quem era o “Goldfinger”, apelido que Chico Moreira inventou para a figura que pode ou não ter existido.

Os cineclubes ficavam na Zona Sul e no Centro, com duas exceções, uma delas o Grande Otelo, que logo fechou as portas, apesar de contar com o apoio da Associação dos Moradores. O cara eleito para presidente da entidade não negociava com o tráfico.

O outro era o nosso, o Adhemar Gonzaga, fundado pelo Francisco Sergio de Magalhães Moreira, apenas Chico para os amigos, depois com o nome de guerra de Chico Moreira. Os outros fundadores foram o Albertino da Paz Ferreira e eu mesmo.

Chico queria ser diretor, diretor de fotografia, montador, restaurador de filmes, produtor, bilheteiro, o diabo! Se fizesse tudo, melhor. Nasceu praquela vida. Albertino era um promissor operador de áudio e quase entrou para a profissão, mas na hora agá fez muito bem em continuar como bancário do Banco do Brasil. O Collor chegaria logo para destruir nossa indústria cinematográfica.

Eu queria ser roteirista, mas sem grana teria que passar uma temporada (que nunca terminou) como jornalista. Mas foi minha a ideia do local para o Cineclube: usávamos uma sala grande do Colégio Guarani, onde fiz o curso primário, pois morava ali pertinho, quando garoto, no bairro da Abolição. Como disse a freirinha que feriu os dedos fazendo crochê: “Foda-se, eu não queria ser roteirista mesmo”`)

Ficamos alguns anos tocando aquele Cineclube. Alice Gonzaga, filha do pioneiro Adhemar Gonzaga, liberou o uso do nome do pai depois de longa conversa que a convenceu de que não ganharíamos um tostão com aquilo. Pelo contrário.

Passamos chanchadas da Atlântida, filmes da Vera Cruz, acho que até da companhia cinematográfica Maristela, muito Cinema Novo, Neorrealismo Italiano, Nouvelle Vague, Bergman. “Gritos e Sussurros” quase encheu a sala, com espaço para umas 30 a 40 pessoas. Só perdeu para “Terra em Transe” e “Deus o Diabo na Terra do Sol”. Lembro da cena famosa do “Se entrega Corisco/ eu não me entrego não” acompanhada por gente cantando baixinho (pra puliça não escutá) e barulho de copos americanos de cerveja na plateia.

Chico era o presidente do Cineclube (cargo do qual não abria mão e nem nós queríamos) e em breve teríamos eleição, mania de diretório acadêmico (do qual, aliás, ele nunca fez parte, pois cagava e andava para política). Eu, Albertino e nossa nova aquisição, Sérgio Luiz de Oliveira, o Sergio Macau, sacaneamos ele um dia por isso.

“Chico, o pessoal que frequenta tá perguntando quando vamos ter eleição? O que você acha de fazermos um debate depois de um filme político sobre isso”, alguém perguntou.

“Como eleição? Como eleição? Que debate? Pode dar merda!”, ele respondia, aparentemente preocupado (não estava, era um gozador de si mesmo e do resto do mundo).

“Porra, Chico, eleição direta quando a ditadura acabar!”.

Fingindo alívio, o sacana que vivia para o cinema soltou esta: “Ufa! Ainda bem! Pensei que alguém queria meu lugar na presidência do Cineclube!”.

Vivia para o cinema mesmo. Eu morava na época em Copacabana, na Prado Júnior, e frequentava a casa dele, na República do Peru. O mãe, sessentona, tinha um gato e – sacana como ele – ameaçava deixar o apartamento para o “Felino” cuidar. Felino era o nome do gato, acreditem.

No quarto do cara havia uma estante cheia de Cahiers du Cinéma, Positif, rolos de filmes, livros em português, inglês, francês e até alemão e russo sobre a arte e, sim, é claro, duas ou três calças, meia dúzia de camisas, algumas meias e dois pares de sapatos. Não comprava quase nada para si. Só gastava com cinema. Depois que se casou, perdi o contato.

Encontrava esse grande e querido amigo apenas em lançamentos de filmes e uma ou duas vezes no tempo em que foi curador da Cinemateca do MAM.

A foto foi enviada em postagens a mim encaminhadas por Wilson Soares de Magalhaes, o Paraná, e Tunico Amancio, ambos da UFF. Nela, Ricardo Cota conta como foi a última vez em que Chico Moreira esteve na Cinemateca. Depois, voltou para sua casa. Foi também sua última foto.

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Fonte Segura: Central de Jornalismo

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