Pesquisadora: “Se trabalho infantil fosse bom, seria privilégio dos ricos”

Por Uol
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Bons tempos, né? Onde (sic) o menor podia trabalhar”.
Foi assim que o presidente Jair Bolsonaro voltou a defender o trabalho infantil, relembrando a época em que, segundo ele, aos 10 anos de idade saía da escola e ia direto para um bar, onde trabalhava por ordem do pai.

A declaração, feita durante um congresso com representantes de bares e restaurantes, na última terça-feira (25) em Brasília, reforça um discurso já conhecido do presidente, que em 2019 chegou a dizer que o “trabalho dignifica a mulher e o homem, não importa a idade.”

No Brasil, nos últimos 12 anos, mais de 46 mil crianças e adolescentes passaram algum tipo de agravo à saúde em função do trabalho precoce, segundo dados do Ministério da Saúde. Entre 2007 e 2019, 27.924 crianças e adolescentes de 5 a 17 anos sofreram acidentes graves enquanto trabalhavam e 279 morreram.

“É inaceitável. Defender o trabalho infantil é um desrespeito à vida e ao direito de crianças e adolescentes de serem protegidos, conforme garante a Constituição. Essa apologia, vinda de um presidente da República, traz um risco ainda maior, porque alcança milhões de pessoas. Ainda há uma parte da sociedade que naturaliza e justifica o trabalho infantil para crianças pobres e negras. Então, quando um presidente faz esse tipo de discurso dá margem para que o trabalho infantil seja tolerado e, de uma certa forma, não compreendido como uma grande violação de direito”, afirma a cientista social Isa Oliveira, que atua há 18 anos no Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil.

Em entrevista a Ecoa, a pesquisadora defende que é preciso uma mobilização da sociedade para frear o retrocesso social que está em curso no Brasil para garantir que toda criança e adolescente tenha o direito de brincar, estudar e de se desenvolver plenamente, como cidadãs e cidadãos.

Ecoa – Como você avalia o discurso de Bolsonaro, que fala em “bons tempos” em referência à época em que menores “podiam” trabalhar?

Isa Oliveira – É uma hipocrisia. O que devemos ter em mente é que precisamos ter a responsabilidade de continuar contribuindo para um avanço civilizatório. Jamais retroceder. Nós mulheres não tínhamos direito ao voto, crianças e adolescentes antes do Estatuto eram objetos, eram tutelados. Inaugurou-se com o Estatuto a compreensão de que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, que têm voz, que devem ser ouvidos. Então, na marcha civilizatória, devemos contribuir para que os avanços conquistados sejam de fato consolidados e que avancem ainda mais, para que todos possam ser inseridos no mercado de trabalho com condições dignas, com garantias trabalhistas, com salário, e que todas as crianças possam ter um ensino de qualidade.

Esse discurso de saudosismo, de “bons tempos”, é falso e hipócrita. Pergunte ao presidente se os filhos dele trabalharam? Por que se era tão bom, se é tão formador de caráter, como diz, os ricos também deveriam querer isso para os seus filhos. Aliás, se isso fosse verdade, não haveria trabalho infantil para crianças pobres e negras. Se o trabalho infantil fosse realmente essa preciosidade, ou essa grande oportunidade, com certeza seria privilégio para crianças ricas e não seria visto como uma “solução'” para pobres e negros.

E o que é preciso para acabar com essa naturalização do trabalho infantil que não está sendo feito, por exemplo?

Olha, é muito coerente que o presidente faça essa apologia ao trabalho infantil no momento em que o governo brasileiro promove uma desestruturação, um desmonte de políticas públicas e sociais que são imprescindíveis para que crianças e adolescentes não sejam precocemente inseridos no mercado de trabalho e, portanto, não sejam exploradas. Agora, o caminho para a prevenção e erradicação do trabalho infantil é a implementação de políticas sociais de educação, saúde, proteção social, de garantia dos direitos humanos, garantia do direito ao lazer, à cultura e ao esporte.

A naturalização do trabalho infantil se dá justamente frente à ausência dessas políticas públicas, porque ele é apresentado como uma “solução” para crianças e adolescentes não se envolverem com a criminalidade, não serem aliciados pelo uso e tráfico de drogas. E isso é uma “solução” para quem? Para crianças de famílias com pais desempregados. Então, essas crianças são inseridas no mercado de trabalho para complementar a renda da família e, algumas vezes, até para garantir a única renda.

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Fonte Segura: Central de Jornalismo

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