Crônica S/A – Amanhecer

Vicente Sa

Às vezes, eu tenho a sensação que o dia amanheceu, mas eu não amanheci com ele, fiquei desencaixado. Ouço o canto das cigarras como se fosse o apito do trem do dia partindo e me deixando na estação. Neste dia, já sei, vou acompanhá-lo de longe, como um viajante, um estrangeiro, e não como um vivente comum, destes que, observo, já começaram a construir a manhã.Se estivesse na urbe, assistiria às pequenas prosas e cafezinhos no balcão das padarias ainda impregnadas dos odores de lençol e pasta de dente. Veria os moradores mais idosos em seu lento e cuidadoso balé matinal, que une a dificuldade com a compreensão. Seria, talvez, um deles com ou sem cachorro.Não deixaria de observar a moçoila animada do 402, que fuma o seu back de short na sacada, a ordenar, mentalmente, os compromissos estudantis. Talvez até a cumprimentasse.Veria, do outro lado da rua, na banca, o garoto que acordou sonhando em comprar a figurinha mais difícil do álbum, a procurar o dinheiro nos bolsos e perceber que o perdeu, deixou cair em algum lugar entre sua casa e a banca. E, antes que a tristeza o engolisse, eu seria aquele velho calmo que, com a bengala, lhe aponta o dinheiro a gritar silencioso por ele na grama.Não deixaria de notar que Lurdes, a diarista de Miriam do 604, hoje traz um sorriso mais forte no rosto e uma pequena falsa joia no dedo, que é a mais verdadeira das promessas que já lhe fizeram. Doida pra contar, planeja deixá-la cair no chão da cozinha, para ter que explicar à patroa e revelar tudo.Sentiria o cheiro da cebola e do alho fritos no azeite que Dona Marina espalha pelo bairro ao preparar suas marmitas. Se mais coragem tivesse, bateria na porta e encomendaria uma para o almoço. Talvez até comesse num banco da praça ao lado de José e Marcos, os dois trabalhadores que estão refazendo a garagem do seu Antenor.Enxergaria a preocupação de Anabela com a menstruação que continua atrasada. Eu a veria olhar, várias vezes, no balcão da farmácia, para o celular, à espera de alguma mensagem de Fábio, o bombeiro, seu namorado. Mensagens que estão cada vez mais escassas, desde que o avisou. Tivesse intimidade ou fosse um velho atrevido, avisaria o que já sei, que ainda hoje ela virá. Diria com, voz pausada e grave: – Respire fundo Anabela, a vida continua e tenha mais cuidado na próxima vez. Tanto com o trem, quanto com quem.Fingiria que não vi seu Olavo apanhar as frutas que deixou cair no chão da loja e colocá-las de novo na caixa sem lavá-las. Afinal, sei, como ele, que o chão estava limpo, ele mesmo acabara de passar o pano.Talvez dissesse para Valdete, que vai caminhando, em seu passo curto, com o dinheirinho apertado na mão, jogar invertido o seu palpite no bicho. Ela está mesmo precisando de um dinheiro extra para arrumar o quarto da mãe, em casa. A umidade na parede faz a velha senhora tossir à noite.Me quedaria, preguiçoso, no meio da tarde, a olhar os pombos na praça e o velho Jonas, o mendigo do bairro, em sua conversa eterna. Quem sabe hoje eu conseguisse entender um pouco do que eles tanto falam há tantos anos.Esperem, estou conseguindo entender. Um pombo diz a Jonas, enquanto cisca o chão compenetrado:- Às vezes eu tenho a sensação que o dia amanheceu, mas eu não amanheci com ele…

Vicente Sá

Administrador

Fonte Segura: Central de Jornalismo

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