‘Quando a bossa nova estourou, fizeram de conta que eu não existia’, diz cantora Alaíde Costa

Ao completar 85 anos, a artista que é dona de uma das vozes mais bonitas do país grava álbum com José Miguel Wisnik, prepara outro com Emicida e lembra ‘preconceito velado’ da turma do banquinho e violão

Por Maria Fortuna
Compartilhado por Central de Jornalismo
09 dez 2020

Alaíde Costa: aos 85 anos, cantora vive um momento de intensa produção Foto: Kazuo Kajihara / Divulgação / Kazuo Kajihara/ Sesc SP
Alaíde Costa: aos 85 anos, cantora vive um momento de intensa produção Foto: Kazuo Kajihara / Divulgação / Kazuo Kajihara/ Sesc SP
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RIO – Era 1968 e Alaíde Costa havia conquistado o quinto lugar do Festival Universitário da TV Tupi, cantando “Outra viagem”, de José Miguel Wisnik, quando ela e o compositor resolveram esticar numa boate. Por um motivo que já não lembra mais qual, ela teve vontade de tirar o anel que vestia e presentear Wisnik. Cinquenta anos depois, ele devolve a gentileza em forma de música, compondo “O anel”, canção que batiza o disco que a dupla lança hoje, aniversário de 85 anos de Alaíde, e retoma o elo entre os dois.


— Quando Wisnik cantou (a estrofe) “o anel que tu me destes”, a ficha caiu. Era o meu anel! Como sou manteiga derretida, comecei a chorar — diz ela que, no álbum, grava “Outra viagem” pela primeira vez.

José Miguel Wisnik compôs as canções do disco ‘O anel’, que gravou em parceria com a cantora Foto: Divulgação/ Anita Abreu Solitrenick
José Miguel Wisnik compôs as canções do disco ‘O anel’, que gravou em parceria com a cantora Foto: Divulgação/ Anita Abreu Solitrenick

Aos 65 anos de carreira, a rainha das canções românticas, suaves e dramáticas vive um momento de produção intensa, apesar da perda gradual de audição causada pela otosclerose. Nada que comprometa seu canto cristalino, doce e melancólico, que arrebatou tanta gente naquele dueto com Milton Nascimento em “Me deixa em paz” (do disco “Clube da esquina”, 1972), e será celebrado em outro disco. Desta vez, Emicida e Marcus Preto capitaneiam o projeto, com músicas de nomaços da MPB compostas para Alaíde cantar. Já chegaram melodias de Joyce Moreno, Ivan Lins, Guinga e João Bosco. Nando Reis e Marcos Valle ficaram de mandar. A ideia é que Emicida escreva as letras.

As oportunidades e, sobretudo, as homenagens tocam fundo na artista, que nem sempre teve o reconhecimento merecido desde que surgiu no programa de calouros de Ary Barroso, em 1955. Nascida no Méier, filha de um forneiro de padaria e uma dona de casa que se virava como lavadeira para criar seis filhos, Alaíde não esconde a mágoa com a turma do banquinho e violão. Ela, que participou (a convite de João Gilberto) dos encontros que marcariam o surgimento do gênero e compôs com Tom Jobim e Vinicius de Moraes, diz: “quando a bossa nova estourou, fizeram de conta que eu não existia”.


Além dos discos novos, a senhora ganhou o prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante no Festival de Gramado pelo filme “Todos os mortos” (de Caetano Gotardo e Marco Dutra). Como foi isso?

Olha, primeiro, a senhora está no céu (risos). Mas, você vê, foi uma surpresa para mim. Faço uma cena em que estou cantando e fazendo um café… Quer dizer, antes, vou colher, moer o café… Tudo usando expressões e gestos. Devo ter feito bem, né? (risos).

É que a sua postura ao cantar acompanha as vibrações do tom da canção, as expressões do seu rosto mudam conforme o sentimento. É difícil até você terminar um show sem chorar, não é?

É uma coisa inexplicável. Me coloco no lugar de quem escreveu a letra, e a própria melodia puxa a gente para emoção. Eu sinto tudo.

O que a música significa para você?


Não sei o que seria de mim sem ela. Passo sem tudo, menos sem a música. Se não fosse ela, talvez ainda estivesse fazendo o que fazia na época (trabalhava como babá de três crianças), vai saber… Comecei muito jovem. Aos 11 anos, cantava em programas de calouro. Ia carregada pelas pessoas sem querer, porque era muito tímida. Aos 16, tomei a iniciativa de ir no programa Ary Barroso de tanto a dona Wanda (então, sua patroa) falar. Aí, depois fui convidada para o meu primeiro trabalho profissional, o de crooner da (casa noturna carioca) Dancing Avenida. Mas não foi muito fácil para mim, não…

Acha que não tem o reconhecimento que merece?

Não sei, acho que não. A vida toda escolhi um tipo de música que não era muito comum. Na época, procurava cantar Johnny Alf, assistia ao programa dele na Rádio Clube do Brasil. Eu ia lá aprender. Justamente pela minha escolha musical, não foi fácil. Porque mesmo na música existia um certo preconceito, sabe? Não tem outra negra que cante o que eu canto, então, eu fui bastante excluída.


Não se tornou uma cantora tão popular por causa do racismo?

Sim, e pela coisa do repertório também. Porque é bem mais fácil um oba oba do que um lirismo. Muitas vezem ouvi: “Você é muito jovem para ficar cantando essas coisas elaboradas” ou “muda esse repertório, canta um sambinha, algo mais animado”.

Como foi para uma jovem negra que morava em Água Santa chegar em um apartamento da Zona Sul e adentrar o meio da bossa nova, feita por pessoas brancas de classe média?

Cheguei muito tímida na primeira reunião que fui. A bossa nova ainda não era famosa. O pessoal se reunia toda semana, mostrava as músicas. Eu tinha facilidade em aprender e começava a cantar. Mesmo com toda a minha timidez, consegui me manter ali. Mas depois que a bossa nova ficou famosa, essas pessoas resolveram fazer de conta que eu não existia.

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Fonte Segura: Central de Jornalismo

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