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Crônica S/A- Papo de Aranha

Por Vicente Sá

*Para Remy, pela arte que nos deu.

Logo por cima de um canteiro de salsinhas, na esquina da sacada, mora dona Aranha, com sua teia e silêncio. Por ordem de um poder superior – minha esposa – ninguém na casa pode tocar nem na teia nem na aranha e, assim, a teia está crescendo cada vez mais e, às vezes, ao final da manhã, o sol acende uns brilhos avermelhados nela e surgem desenhos bem bonitos.
Ontem, sem inspiração para escrever a crônica semanal, zanzando pela casa, fui até a esquina da salsinha, morada dela, para provocá-la.

  • Dona Aranha, por que, aqui no Brasil, a senhora mantém esta mudez sisuda e, em alguns países da África, é o dono da história, o contador de causos?
    No silêncio que se seguiu à minha pergunta, senti-me ridículo a falar com uma aranha que nem parecia conhecer a lenda de Anansi. Vai ver nem conhecia Rego Júnior. Já me virava para voltar ao computador quando uma vozinha, que parecia vir de longe, me respondeu:
  • Você quer que eu fale? Pois, então, vá lá dentro, pegue uma cadeira e sente-se aqui, para trocarmos umas ideias. Tem muito tempo que eu não falo com humanos.
    Se o leitor acha que eu me assustei, fique sabendo que sim, e muito. Mas, não tendo nada melhor para fazer, busquei a cadeira e sentei-me ao lado da imensa teia e da dona Aranha, que, agora, parecia maior e mais colorida.
  • Ouça, meu jovem, para conversar comigo é preciso cumprir duas exigências: primeiro, prestar muita atenção no que eu falo, e, segundo, não falar o que conversamos com ninguém.
    Na dúvida se podia emitir algum som ou não, concordei com a cabeça e a aranha, que já estava com quase um metro de tamanho, me ordenou que virasse de costas pois ela ia se tornar gente e depois se vestir. Fazia parte do seu ritual de transformação e eu não deveria assistir.
    Quando pude voltar a fitá-la, deparei-me com uma mulher negra, de idade indefinida, mas bela, com dreads coloridos, formando uma cabeleira encantadora.
  • Você, meu jovem, não veio aqui só porque está sem inspiração para sua crônica. Sinto e sei que você quer saber algumas coisas que possam aplacar uma tristeza crescente. Concentre-se e fale. O que é que o pequeno humano quer saber?
    Pensei um pouco e falei com sinceridade:
  • Por quê, nestes tempos tão difíceis, com pandemias, governo autoritário e desumano, desemprego e racismo, ainda estão morrendo tantas pessoas boas, tantos artistas importantes, tantos amigos queridos?
    A mulher bela envelheceu alguns anos num instante, depois voltou a ser jovem e me falou com voz meiga:
  • Humano Vicente, saiba que não estão morrendo mais artistas, amigos ou pessoas boas do que sempre morreram, você é que, agora, está mais centrado, com mais tempo por conta do isolamento e está sentido mais as perdas, percebendo mais a velocidade da vida.
    Sorriu suave e carinhosamente e completou:
  • Além disso, você está ficando velho, seus ídolos e amigos também, é normal que partam.
    Mais à vontade, perguntei:
  • Mas, Dona Aranha, você não se transforma, não é em homem, quando toma a forma humana?
    A mulher cujo rosto, agora, aparentava ter todas as idades ao mesmo tempo, riu e falou com voz masculina:
     Eu posso ser o que quiser, sou Anansi. Mas vocês, humanos, também podem, basta começarem a enxergar em volta e ouvir bem, com atenção. Como diz aquele compositor, que daria um belo dum aranhão, Paulinho da Viola: “As coisas estão no mundo só que é preciso aprender”. E eu completo: aprender, ouvir, enxergar, respeitar, fruir e por aí vai.
     Agora, vai buscar água para jogar nas minhas afilhadas salsinhas, que elas estão com sede. Vai logo, que estou doida para voltar a minha forma de aranha! Tem uma mosquinha que acabou de cair na minha teia. Vai!
    Fiz o que Anansi pediu e, logo em seguida, sentei-me ao computador.
    Antes que o leitor pense em me mandar alguma mensagem, para que eu não escreva esta história, aviso: não se preocupe. Ela, sabiamente, me proibiu de falar para alguém, não de escrever. Afinal, toda aranha é cheia de manha.
    Vicente Sá
    Novo PS: As Crônicas S/A, agora, estão sendo publicadas no portal – Central de Jornalismo – www.centraldejornalisamo.com.br e transmitidas pela Rádio Esplanada FM, todas as segundas feiras às 9 horas da manhã. Os leitores que quiserem ouvir minhas histórias pela minha voz devem acessar o site www.radioesplanadafm.org ou usar o aplicativo radiosnet.com. Até o próximo Domingo ou até amanhã

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