Por Rubens Valente/UOL
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Central de Jornalismo
19 de julho de 2021
Um grupo de senadores atuantes na CPI da Covid acredita que a comissão já conseguiu comprovar a tese de que o presidente Jair Bolsonaro buscou conscientemente a contaminação em massa dos brasileiros com o novo coronavirus a fim de atingir uma suposta “imunidade de rebanho”.
Para esses parlamentares, a investigação sobre esse ponto já está encerrada e deverá ter grande destaque no relatório final. A comissão agora busca provas sobre os supostos atos de corrupção no Ministério da Saúde e outros tópicos, como o impacto das fake news no combate à pandemia.
A coluna ouviu cinco senadores que atuam na CPI e todos consideraram provada a tese levantada por especialistas de que Bolsonaro tinha por objetivo a disseminação do vírus, em detrimento de lockdowns e busca por vacinas.
Vice-presidente da CPI, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) que “com certeza” a estratégia do governo já ficou demonstrada ao longo dos trabalhos da Comissão. “Inclusive os próprios documentos que chegam à CPI – até um documento do Ministério da Economia – admitem isso. Todos os elementos que temos apontam que o governo deliberadamente trabalhou por essa estratégia da ‘imunidade de rebanho'”, disse o senador.
O senador Alessandro Vieira (SE), líder do partido Cidadania, vai na mesma linha. “É muito claro que o governo apostou na chamada ‘imunidade de rebanho’. Ele foi alertado, os técnicos alertaram sobre o equívoco. Essa etapa da investigação [da CPI] foi vencida. O governo do país foi por essa linha por diversos motivos, como o boicote à OMS [Organização Mundial da Saúde] ou ignorância mesmo”, disse Vieira.
“Para mim, este é o principal ponto dos trabalhos da CPI, não tenho dúvida. Até a corrupção não é mais relevante do que esse ponto, que foi o próprio fundamento da criação da CPI”, disse o senador.
Os senadores citam como provas do plano de Bolsonaro: a baixa publicidade sobre a estratégia do distanciamento social, os ataques aos governadores e prefeitos que tentaram impor medidas de restrição de circulação de pessoas, o veto ao uso de máscaras, a tentativa de proibição, com uma ação no STF, de que governos determinassem o lockdown, o boicote na compra das vacinas, a recusa em apoiar a produção e compra da Coronavac, do Instituto Butantan, e da Pfizer, dos EUA, o esforço para disseminar a cloroquina e o suposto “tratamento precoce”, na verdade inexistente contra a Covid-19, as correspondências diplomáticas que mostram o esforço pela busca de cloroquina e não para integrar o consórcio da Covax Facility e inúmeras declarações de Bolsonaro contrárias ao isolamento social.
Senador diz que pesquisas demonstraram “efeito Bolsonaro”
O senador e médico Rogério Carvalho (PT-SE) disse que o governo “adotou uma ação dolosa e continuada” ao estimular “vida normal” dos brasileiros durante a pandemia. O plano do governo só não deu certo, segundo o parlamentar, porque houve “uma resistência” em diversos setores do país, como a oposição, governadores e prefeitos e a imprensa.
“Se não fosse por isso, se a estratégia do Bolsonaro tivesse prevalecido, teriam morrido 1 milhão, 2 milhões, 3 milhões de brasileiros, porque ele apostava na contaminação de todo o país o mais rápido possível. Foi um crime contra a saúde pública e a vida.”
Ele citou como uma das evidências do plano de Bolsonaro a ausência de publicidade efetiva a respeito da doença. “Basta ver que nunca houve uma campanha consistente de comunicação sobre os riscos da Covid”, disse o parlamentar.
À CPI, o governo alegou ter gasto cerca de R$ 190 milhões em publicidade sobre o combate à pandemia, mas o senador observa que o conteúdo das peças publicitárias era “dissociado da palavra dos especialistas” e a conta incluiu gastos com diversas outras campanhas, como fomento ao turismo e à economia.
Rogério Carvalho citou ainda diversos estudos que apontaram um “efeito Bolsonaro” ao mostrar que municípios que deram mais votos ao então candidato à Presidência, em 2018, registraram mais casos e, consequentemente, mais óbitos por Covid-19. Isso demonstraria que os cidadãos da base eleitoral bolsonarista ouviram mais as manifestações de Bolsonaro e saíram às ruas, mesmo contra as recomendações científicas nacionais e internacionais.
O senador Fabiano Contarato ES), que não é membro da CPI mas exerce uma grande atividade na comissão, como participante das reuniões do comando da investigação, considera que “os crimes já estão provados”, restando a “individualização de cada conduta e a tipificação penal”.
“É óbvio que ele [Bolsonaro] acreditou na imunidade de rebanho. Ele apostou nesse caminho para que as pessoas se sentissem à vontade para ir às ruas. Esse episódio para mim está concluído [como fase de investigação da CPI]”, disse o parlamentar.
Outras das provas citadas pelos senadores são declarações do próprio Bolsonaro ao longo do ano passado. Em julho de 2020, ele disse: “Esse vírus é quase como, eu já dizia no passado e era muito criticado, era como uma chuva, né, vai atingir você, né? Alguns, não. Alguns têm que tomar um maior cuidado com esse fenômeno por assim dizer”.
Numa entrevista ao “Correio Braziliense” em maio do ano passado, o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta disse que Bolsonaro procurava, com a cloroquina, “um medicamento para que as pessoas sintam confiança, para retomar a economia”. “E isso a pessoa fica na sua tranquilidade achando que o medicamento resolve o problema. Como é barato e o Brasil produz, por ser medicamento da malária… Só que malária costuma dar em mais jovens”, disse Mandetta
Em seu depoimento na CPI, contudo, Mandetta não foi tão assertivo: “É muito difícil você entender qual é a teoria. A impressão que eu tenho é que havia algumas teorias que eram mais simpáticas. Uma delas era: o brasileiro vai se contaminar, ele mora em aglomerados, ele mora sem esgoto, então, vai se atingir o coeficiente de proteção de rebanho. Acho que essa pode ter sido talvez a inspiração dessas pessoas para levar até o Presidente, eu acho que esse era um argumento que eles poderiam colocar nesses termos”.
Especialistas apontaram “estratégia de propagação da Covid-19”
As conclusões até aqui da CPI sobre esse tópico corroboram os resultados de um estudo divulgado em janeiro por Deisy Ventura, doutora em direito internacional da Universidade de Paris 1 e professora titular da Faculdade de Saúde Pública da USP (Universidade de São Paulo), Fernando Aith, diretor do Cedepisa (Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário), e Rossana Reis, professora do Departamento de Ciência Política da USP.
Em artigo, os pesquisadores escreveram que “existe uma estratégia de propagação da Covid-19 no Brasil, implementada sob a liderança do presidente da República”. Afirmaram ainda que, a partir de abril de 2020, “o governo federal passou a promover a imunidade coletiva por contágio como meio de resposta à pandemia”.
“Ou seja, optou por favorecer a livre circulação do novo coronavírus, sob o pretexto de que ela naturalmente induziria à imunidade dos indivíduos, e de que a redução da atividade econômica causaria prejuízo maior do que as mortes e sequelas causadas pela doença”, diz o artigo dos pesquisadores.
Pazuello disse que não concordava com a tese da “imunidade de rebanho”
No depoimento que prestou à CPI, o general Eduardo Pazuello, que foi ministro do Ministério da Saúde após a queda de dois ministros pressionados por Bolsonaro, disse que não concordava “com a abordagem de imunidade de rebanho”.
Ele foi indagado pelo relator da CPI, o senador Renan Calheiros (MDB-AL) sobre “a tese da imunização de rebanho, segundo a qual a imunidade da população poderia ser atingida não com a vacinação, mas também com a contaminação em massa pelo vírus e o desenvolvimento da imunidade natural por parcela relevante da população”.
O ex-ministro disse ver problemas na tese. “O que faz real e a tese não ser plena é que você não sabe o grau de atividade dos anticorpos que serão criados. Então, que você tem uma possibilidade de ter uma imunidade a partir de várias pessoas, não há dúvida, mas como a gente não sabe como isso se comporta no coronavírus, você não pode simplesmente achar que, a partir da contaminação, todos estão protegidos. […] Como você não sabe o grau da profundidade, do grau de força desses anticorpos ou da capacidade de ele agir no organismo e por quanto tempo eles ficam, isso tudo são incógnitas, você não pode estar apoiado apenas nessa tese, tem que partir para a imunidade, para a imunização com vacinação”, respondeu Pazuello.
Outro ex-ministro da Saúde no governo Bolsonaro, Nelson Teich disse, no seu depoimento à CPI, que a tese de que a imunidade de rebanho seria atingida com o contágio, e não com a vacina, “é um erro”.
“A imunidade você vai ter através da vacina, não através de pessoas sendo infectadas. Então, isso aí não é um conceito correto. Então, o que acabou acontecendo – eu até comentei antes – é que você teve nos lugares uma sobrecarga dos sistemas, porque você teve muito mais casos que o sistema podia receber. Isso é mais um item que deixa claro como é importante você já estar preparado gerencialmente para enfrentar uma pandemia, entendeu? Isso é mais uma coisa que a gente vai ter que aprender. Mas essa imunidade de rebanho, através de infecções, não, isso é um erro.”