Crônica S/A / Confissões

Vicente Sa

Antes de mais nada, devo confessar que o cronista não escolhe o tema de sua crônica. Na verdade, a história, como quem dança uma valsa, abraça a alma do escritor e o leva por lugares inexistentes e ele, transido de medo ou de amor, deixa que seus dedos teclem, submissos, como agora estou a fazer.Outra confissão: como diz o poema atribuído a mim, eu não moro, me demoro. E no lugar em que hoje me demoro, ao final da tarde, enxugo e arrumo as quatro cadeiras, para receber as almas de amigos e de autores que li. Em recente tarde, Jorge Luís Borges chegou cedo e sozinho. Resmungou um cumprimento e sentou-se. Parecia inquieto, a rodar sua bengala. Como pretenso bom anfitrião, perguntei de dona Leonor, sua mãe, e contei que estava, mais uma vez, lendo o Livro dos Seres Imaginários, que Renato Matos encontrara em sua casa que, na sua arrumação desarrumada, está sempre grávida de surpresas.Seus olhos turvos me fitaram enquanto se livrava de milhares de páginas que entulhavam sua mente.- Vicente, vamos imaginar que eu tenha um bom vinho à mão.Dito isso, uma taça surgiu e ele a sorveu devagar e tateadoramente, como um bom argentino. E naquele lusco fusco que nos tornava irreais, professou:- Você não sabe, mas houve um tempo em os seres humanos não conheciam a cobiça, o vício da acumulação, e ainda ouviam a natureza. Suas falas em volta da fogueira eram pura filosofia, sadia especulação, e os caminhos próximos às aldeias não eram de ida, pois ninguém tinha nada a buscar, mas entradas por onde recebiam os deuses que ainda eram meninos e costumavam se perder.Deixando a taça suspensa no ar, arrumou a gravata, olhou para o gato Zip que o admirava e continuou:- Os deuses perdidos consultavam as mulheres que dirigiam a aldeia e, como eles, sabiam gerar vida. Aquelas mulheres traziam na alma a Canção do Nada, com suas doze palavras mágicas, capaz de promover milagres, pois dizem que foi dela que nasceu o mundo.E assistindo a taça se encher de vinho, murmurou:- A última desta estirpe que vi, foi na Praça de Maio, no tempo em que ainda enxergava com os olhos.E completou, com um inesperado sorriso:- Mas acho que sua tia Walkiria é dessa tribo. Estou curioso para saber quais eram as doze palavras e em que língua eram ditas. Você pergunta pra ela?Você sabe que eu continuo escrevendo e uma editora que, abusadamente, se intitula Eterna, aqui onde eu vivo ou sonho viver, está esperando este próximo trabalho. Veja o que pode fazer por mim. E saiba que estas suas crônicas fantásticas são uma ótima ponte de passagem. Por isso, espere mais visitas, minhas e de outros sonhadores.Jogou a taça em minha direção e enquanto eu me esticava tentando inutilmente segurar uma quimera, sumiram, ele e a taça.E já que esta crônica está repleta de confissões, vai mais uma:Consultei tia Walkiria e ela me disse que as palavras da Canção do Nada não são doze, são quinze. E que pode até revelar, mas quer falar cara a cara com Borges e saber qual a abordagem do livro. “Afinal, ele é um homem e os homens, vivos ou mortos, não são confiáveis”.Confissão final: ultimamente tenho me esforçado para deixar de ver o mundo de forma binária, me despir dessas roupas antigas e mal-ajambradas que a vida me deu. Tia Walkiria tem acompanhado meus progressos e, talvez, eu participe da conversa e aí, se a bela bruxinha deixar, eu conto pra vocês.Bom Domingo!

Vicente Sá

Colagem de Guilherme Leão

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