Para Fernando Machado
Vicente Sa
Nós, moradores do Distrito Federal, quase todos, adoramos falar do tempo. E gostamos muito deste céu de abril/maio/junho azul e a temperatura baixa que nos permite boas caminhadas. É o privilégio de morar num planalto, bem pertinho do céu. Toda esta introdução é para dizer que minha história começa, mais uma vez, em uma caminhada com o FAN, Filósofo da Asa Norte, pelas setecentos da asa mais querida.Fui encontrar meu amigo na vendinha do seu Olegário, que, é claro, também serve uma cerveja bem gelada. Sentado nas caixas de madeira que o velho comerciante oferece como banco e mesa, deparei-me com ele a conversar com um homem de chapéu que me pareceu conhecido. Devia ser algo em torno de quatro e meia, cinco horas, no máximo, e a tarde estava linda, boa para passeio, razão do meu pequeno atraso.Mal sentei, antes mesmo de me apresentar o seu amigo, o FAN me perguntou: O que você acha do diabo, Vicente?Lembrando uma história antiga, respondi brincando: Acho que é casado, pois tem chifres.Os dois pareciam também conhecer a história e nem se dignaram a fingir que riam. Esvaziaram seus copos e pediram mais uma cerveja e um copo para mim.Sentindo que o clima não estava para brincadeiras tolas, perguntei na cara dura se ele não ia me apresentar seu amigo. Perfeitamente! Este aqui é o diabo. Hoje, especificamente, usando seu poder de transformação: um pobre diabo. Este é o Vicente, aliás, você já o conhece, você conhece todo mundo.O pobre diabo sorriu com os olhos tristes e concordou. Depois falou em tom professoral: Estes chifres me foram dados lá pelo século quatro depois do crucificado, coisa da igreja que juntou características de deuses de outras tribos que eles já tinham detonado econômica e culturalmente e puseram em mim. Mas eu gosto, me dá um certo charme.E tirou um pouco o chapéu para que eu visse os rosados chifres que lhe ornavam a testa. Mas, hoje, usando os poderes que ainda me restam, estou transmutado em um pobre diabo, que é como são chamados os zé-ninguém, os sem nada, a maioria da humanidade.Virando o copo com uma sede inesperada, continuou: Venho assim, especialmente, para lhe pedir que na sua crônica dominical fale de nós, os simples, aqueles que pouco anseiam, mas que têm a alma livre da ambição e não são respeitados neste mundo onde ter é ser. Por falar nisso, gosto de sua prosa, ela tem estilo, coragem e o diabo a quatro, que a torna diferente.Me sentindo mais à vontade, perguntei o que ele achava da frase ” o diabo que te carregue.”Ele mexeu as sobrancelhas de uma forma engraçada e falou: Saiba que eu não carrego ninguém, na verdade, nem gosto de receber este bando de gente ruim no meu lar, o inferno. Imagine ter que aturar Hitler, Mussolini, Pinochet e futuramente Bolsonaro. Com mil diabos, ninguém merece!Sorriu, pagou a conta e falou mansamente: Mas vamos dar uma passeada que a tarde está divinal. Prometo ficar calado para que você se inspire e elabore sua crônica sobre os pobres diabos, afinal, eles são o que há de menos egoísta na humanidade.Concordei e saímos caminhando pela Asa Norte, onde, me garantiu o pobre diabo, antes de calar definitivamente, ele também adorava passear à noite.Assim, termino esta crônica cumprindo minha promessa e inserindo uma letra de Climério Ferreira que talvez se refira aos pobres diabos, que também são filhos de Deus.Vicente SáPalha de arrozO rio beirando a rua num arremedo de caisO vapor de Parnarama chegando de PalmeiraisO velho homem do porto de olhos postos no rioSentindo todo o vazio de sua pobreza em pazMaria, boca da noite na pensão familiarTem os olhos de manhã a luz clara do luarCada teu povo noturno, teu povo maior MariaTeus operários da noite nas oficinas do diaAli onde habitou a rua cheia de tédioHoje mora outra dor feita de casa e de prédioJá nem sei se essa rua realmente existiuOu se foi obra de algum bêbado num acesso de poesiaVento no rio outro sonho mais refletido que a luaInventou um cais tristonho e os habitantes da rua
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