Por Caco Schmitt
Jornalista, roteirista e diretor. Trabalhou na TV Cultura/SP como diretor e chefe da pauta do jornalismo; diretor na Agência Carta Maior/SP e na Produtora Argumento/SP. Editor de texto no Fantástico, TV Globo/SP. Repórter em vários jornais de Porto Alegre, São Paulo e Brasília.
Ainda nos primeiros dias da minha quarentena, final de março, ficava triste com o que via na tevê: a angústia dos médicos italianos nas UTIs. Os sistemas de saúde de países do primeiro mundo entravam em colapso e não havia respiradores nem leitos para todos. Na Itália, a temível Escolha de Sofia penetrava os corredores hospitalares, com seu amargo significado de escolhas difíceis. O Colégio Italiano de Anestesia, Analgesia, Ressuscitação e Cuidado Intensivo (SIAARTI) divulgou um documento afirmando: “a falta de recursos suficientes para tratar todos os pacientes graves pode fazer com que médicos e enfermeiros tenham de escolher quem será admitido nas UTIs de acordo com suas chances de sobreviver”. O texto falava de um cenário de “medicina de catástrofe” que, na falta de estrutura, tinha que considerar a idade do paciente, se ele tem outras doenças, a gravidade do seu estado e a possibilidade de reversão do quadro. Chegaram a discutir um limite de idade para a pessoa ser atendida nas UTI, reservando os recursos para quem tem maior chance de sobreviver e, teoricamente, viverá por mais tempo depois de salvo. Infelizmente é o que está pra acontecer no Rio de Janeiro e, veladamente, já acontece em outros estados com a situação muito grave: a loteria da vida ou morte! Na verdade, um vestibular invertido, como veremos adiante. Ontem, dia do trabalhador, 400 cariocas esperavam por uma vaga na UTI (leia-se respirador e chance de sobrevivência). E qual a resposta das autoridades? “Estamos definindo protocolos”, mas, na verdade, é a dolorosa escolha de quem vive e quem morre. Tiveram tempo pra organizar o sistema de saúde, de contratar vagas da medicina privada, mas não fizeram e, pior, o povo não colaborou, o distanciamento social falhou e os necrotérios dos hospitais estão lotados de corpos. O estado do Rio de Janeiro vive seu pior momento, não tem leitos, doentes esperam em cadeiras, corredores dos postos de atendimento, cemitérios não têm vagas nos frigoríficos, aguardam contêineres. O Rio teve o maior registro diário de morte, 67, no primeiro de maio. Já são mil mortes. Ontem, a Secretaria de Saúde comunicou que discute critérios de escolha para atendimento. Será uma espécie de Enem da morte! E quais doentes terão direito a uma vaga em UTI? O “protocolo técnico” ainda está em estudo, mas a ideia é uma avaliação por pontuação de 0 a 24. Zero é nota “boa” e 24 é nota “ruim”. Ao contrário do vestibular, quem somar menos pontos fica com a vaga. Quanto menor a nota mais chances de se conseguir um leito. Serão analisadas as condições de seis órgãos do corpo humano: pulmão, rins, coração…Se já sofreram algum dano pelo novo coronavírus, acrescenta pontos. Quem apresentar algum problema sério, doença existente, cardiopatias, diabetes: mais pontos. E a idade também, quando mais velho, mais pontos. Os jovens que estão nas ruas, desafiando a “gripezinha”, afrontando e debochando do distanciamento social, quando se encontrarem com o coronavírus, irão para o hospital e, no vestibular da morte, somarão menos pontos e, graças a essa nota invertida, ficarão com a vaga dos idosos que estão resguardados em casa. O “protocolo” diz que quem tiver até 60 anos ganhará uma vaga antes dos que têm entre 61 e 80 anos. Os que tiveram a sorte de viver 80 e ousam seguir vivendo ficarão no fim da fila na disputa por leito, ou seja, condenados à morte! No Brasil do novo coronavírus, a questão de classe social continua, os pobres correm atrás de atendimento, morrem em casa ou nos corredores sem ar, se contaminam no transporte coletivo, nas filas dos bancos atrás dos 600 reais; os ricos têm seus hospitais; a classe média seus planos de saúde; mas, agora a covid-19 inaugura uma nova luta: a etária: só os mais jovens terão respiradores nesse macabro vestibular. No Brasil da covid-19 ser pobre e idoso é ser uma pessoa condenada!