O dia 7 de setembro de 2022 será um dia de disputar o que marca a identidade de ser brasileiro.
Por Luiza Ribeiro Moraes
Brasil de Fato | Porto Alegre Compartilhado por
Central de Jornalismo
01 de Setembro de 2022
Tem um Brasil que é próspero
Outro não muda
Um Brasil que investe
Outro que suga
Um de sunga
Outro de gravata
Tem um que faz amor
E tem o outro que mata
(Brasis, Elza Soares)
Na correria do dia a dia, datas comemorativas parecem de pouca ou nenhuma importância. Em um olhar superficial, o dia 7 de setembro, data escolhida para marcar a Independência do Brasil, serve apenas como feriado. Para aqueles que ainda possuem um trabalho não precarizado acaba sendo um dia de descanso e nada mais. Será mesmo? Na escola, no Fantástico, em outdoors, nos discursos de políticos e de movimentos sociais, nas conversas de bar, na Copa do Mundo e nos almoços de família estão lá os símbolos da Independência do Brasil, mesmo que os interlocutores desses diálogos nem percebam que estão inspirados por esse marco.
Uma sociedade baseada em um tempo linear (passado-presente-futuro) não perde de vista seus momentos históricos. Nesse horizonte, o passado serve de ensinamento para o presente e o presente serve de construção para o futuro. Uma sociedade dividida entre aqueles pertencentes ao seu grupo (os brasileiros, por exemplo) e aqueles fora deste (os estrangeiros, por exemplo) precisa de um passado comum entre “os nossos” para legitimar-se. Nesse sentido, monumentos, exposições em museus, acervo patrimonial, nome de ruas, praças e avenidas servem como um marco territorial desse passado comum. Enquanto datas comemorativas servem de marco temporal, como o Dia da Consciência Negra, Dia do Trabalho, Dia da Mulher, Dia do Descobrimento, Dia dos Povos Indígenas ou mesmo Dia da Independência do Brasil.
Porém, esses espaços territoriais e temporais são escolhidos. Eles podem parecer naturais para nós que vivemos inseridos nesses lugares. Na verdade, quando, como e para quem comemorar são escolhas arbitrárias. Assim, possuem invariavelmente uma pretensão política, mesmo que indiretamente. E é por isso que a evocação do passado se torna importante, pois são através desses marcos discursivos que se garante a manutenção da sociedade ou a ruptura desse sistema, dependendo de como são utilizados.
A identidade é legitimada pelo passado comum, pelos símbolos que a compõem e, principalmente, através das comparações com aqueles que não fazem parte dela, ou seja, os outros fora da sua identidade. Ser mulher é não ser homem, ser branco é não ser indígena, ser brasileiro é não ser australiano, ser surdo é não ser ouvinte, ser legal é não ser chato e assim vai.
O dia 7 de setembro de 2022 será um dia de disputar o que marca a identidade de ser brasileiro, mais do que qualquer feriado ou data comemorativa deste ano. Outdoors e mensagens no Whatsapp espalhados pelo país por grupos bolsonaristas vêm trazendo uma visão bem clara: existem nós (o cidadão de bem, o patriota, o pai de família) e existem eles (a esquerda, as feministas, o MST). Na sequência convidam todos que se sentem pertencentes à identidade elogiada para participar de passeatas no feriado. A ala progressista do nosso país já há tempos denuncia o perigo do bolsonarismo, da onda de violência e perda de direitos gerada. Há algo que por vezes passa despercebido nessa denúncia: o discurso bolsonarista amparado pelo Dia da Independência cria uma identidade nacional completamente restrita.
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Outdoors e mensagens no Whatsapp espalhados pelo país por grupos bolsonaristas vêm trazendo uma visão bem clara: existem nós (o cidadão de bem, o patriota, o pai de família) e existem eles (a esquerda, as feministas, o MST)
E qual é o discurso conservador sobre a Independência do Brasil reverberado por essas mensagens? A ideia de que o Brasil se emancipou pelas mãos de um monarca português há 200 anos atrás (o Grito do Ipiranga feito por Dom Pedro I no dia 7 de setembro de 1822), tornando-se um país grandioso pelo comando de poucos homens brancos da elite. Consequentemente é defendido que a crise político-moral-econômica atual foi causada pelos outros que tomaram o poder.
Nesta visão, o país “decadente” e todas as dificuldades que enfrentamos cotidianamente são resultados não da constante exploração de poucos sobre muitos, mas das políticas públicas de assistência, das leis de cotas, das lutas feministas, da ascensão social da classe baixa nos governos petistas e assim por diante. Esses outros na verdade acabam sendo a maioria do que constituí o país. Não é à toa que aos olhos dos bolsonaristas qualquer um é comunista, defendendo que esse não deveria ter direito à participação política. “Brasil ame-o ou deixe-o”, não é mesmo?
Assim, o 7 de setembro é instrumentalizado por esses setores para criar uma gênese do país pelas mãos de poucos (Pedro Álvares Cabral, Dom Pedro I, José Bonifácio, Deodoro da Fonseca e outros), usando desse pretenso nascimento para explicar seu destino. Esse discurso não surgiu agora com Bolsonaro, ele existe até na forma como aprendemos História tradicionalmente, quando estudamos os heróis da pátria em vez dos processos de massa que fizeram o país. Também está na vinda do coração de Dom Pedro I para o Dia da Independência: a centralidade desse processo permanece na figura do monarca. A novidade do bolsonarismo foi restringir ainda mais quem pertence à identidade nacional e extremar a violência contra quem não pertence.
A escolha desta data traz consigo esses impasses, mas também tem potencial para ser ressignificada por outros setores da sociedade. Nosso dever é trazer para a discussão: Quem se tornou verdadeiramente independente no dia 7 de setembro de 1822? Por que comemoramos a Independência do Brasil nesse marco? E mais importante: que identidade brasileira nós queremos evocar? É possível tomarmos em nossas mãos o Dia da Independência e nos tornarmos verdadeiramente soberanos de nosso país?
- Graduanda em História Licenciatura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atua como pesquisadora, bolsista da Fapergs, do Laboratório de Estudos sobre os Usos Políticos do Passado (Luppa), vinculado ao Departamento de História, com ênfase nos estudos sobre as formas de uso do passado nas representações da Independência do Brasil no contexto contemporâneo. Além disso, é professora de História em cursinho popular para pré-vestibular e militante do Levante Popular da Juventude.
- Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Edição: Katia Marko