Por Grace Maya
Central de Jornalismo
31 de maio de 2021
Nesse sábado, tivemos a famigerada marcha contra Bolsonaro. Depois de quase 3 anos de governo, finalmente vemos o povo presente nas ruas. Eu, no fundo do meu cansaço e ceticismo, vejo aliviada as fotos na minha timeline e respiro pensando que talvez isso seja um sinal que existe alguma esperança e alguma possibilidade de mudança. As fotos que comparam as duas marchas, a favor e contra, sem sombra de dúvidas fazem nossa semana começar com um ar de renovação, esperança e vai saber qual o poder do pensamento de todo o povo junto.
Sabemos que o tema da quarentena foi um fator determinante no timing das manifestações no Brasil, considerando o vergonhoso e polêmico caso das vacinas, o considerável atraso da manifestação contrária ao governo tem sua razão de ser. Sabemos que parte das pessoas, que se apresentaram nessas marchas em todo país, estão vacinadas e mesmo isso não significando muito, em termos técnicos, fez muita gente tomar coragem. Ou seja, por agora essa enfermidade por um lado favoreceu os ideais do governo tirano e por outro lado pode ter sido fatal para a direita. Ainda não sabemos, a ameaça de Bolsonaro seguir no governo ainda é real!
Nesse momento, o cálculo ficou mais fácil de fazer pra galera de humanas, ou se morre de reclamar ou se morre de não reclamar. À essa altura do campeonato, todos já presenciaram a morte por covid de pessoas conhecidas e amadas, se duvida menos e a morte se aproxima a galopes que já se escutam em um doppler aterrorizante. Sair às ruas é um mínimo de rebeldia que se espera da esquerda, que vem esperneando pouco e com um grave problema de auto representação.
Milhões de pessoas no mundo inteiro, desde muito tempo atrás, saem às ruas em vários países para protestar contra decisões tomadas pelos seus governantes, seja por aumento de impostos ou a participação em uma guerra, o certo é que as marchas nas ruas é uma forma do povo expressar sua indignação e discordância com o que é decidido nos altos escalões do poder em seus respectivos países, sejam eles Inglaterra, Venezuela, Colômbia, Iraque, EUA e finalmente Brasil.
Primeiramente, podemos aqui diferenciar as marchas em países democráticos ocidentais e outros com históricos políticos totalmente diferentes. Sugiro nos ater ao nosso país e especular sobre o poder das marchas populares em nosso contexto político atual.
Com faixas, palavras, frases criativas ou hashtags, em corpos ou placas de papelão e todo tipo de performances essas artes acabam nas capas dos principais jornais e se fazem presentes em nossas timelines. Mas a pergunta é: mesmo saindo nas mídias e jornais de todo mundo, qual o real impacto dessas marchas? Qual o potencial de mudança que possuem essas manifestações devidamente autorizadas?
Me passam as horas e os dias e me pergunto se isso serve de alguma coisa, ou seja, será que um monte de gente na rua andando pacificamente, como em um carnaval, com um tema, com uma cor, com um ideal, cantando e dançando são perigosos para alguém? Me pergunto que mudanças seriam possíveis nesse momento e que poder a massa teria de exigir algo? Quais são nossas reais opções de coerção?
Obviamente a primeira resposta seria: Oras bolas, queremos tirar esse tirano do poder! Okay, já me parece válida essa resposta.Queremos frear essas mortes? Acreditamos que ainda é possível parar esse genocídio, será? Será que acreditamos que com uma marcha podemos frear nossa sociedade de chegar a um completo colapso? Vejamos!
Não podemos esquecer que Bolsonaro foi eleito democraticamente! A democracia tem dessas coisas, a democracia é também um espelho da sociedade, a democracia é a única forma de consenso social, ainda que manipulado pela mídia e pelas forças do status quo, a democracia, por mais incrível que pareça, ainda é a melhor forma de governo.
Também sabemos que o governo de Bolsonaro se assemelha muito mais a um reinado medieval do que a uma democracia republicana, em nome de deus, ele solta fogo pela boca e queima aos ímpios e pecadores de esquerda em sua fogueira pandêmica.
Eu, que saí do Brasil por não suportar a caretice violenta e generalizada que vivia o Brasil, já antes do golpe da Dilma, confesso que muito me surpreendi ao ver esse canalha inepto chegando ao poder. Em outras palavras, quero dizer que apesar de saber que nossa sociedade era insuportavelmente hipócrita, moralista, cristã, decolonial, aburguesada, amansada, egoísta e acomodada, confesso que eu, no meu auge de ignorância e inocência, não imaginava que a esquerda estava tão desorganizada a esse ponto, e, que a direita tinha tanta gente ignorante, apesar de terem estudado nos melhores colégios. Mas sim, o pior é que a esquerda é um reino dividido, e assim, a maioria consensual, que nunca foi e nunca será uma verdadeira maioria, levou o Bozo ao poder, repetindo o que passou com Adolfo e aqui estamos nós, em meio do genocidío.
Então, ousaria dizer que na verdade, de alguma forma, o Brasil nunca foi tão bem representado. O presidente nefasto representa bem nossa sociedade por um lado, é uma triste verdade, mas não podemos negar, que por meio das marchas deste sábado, podemos ver claramente que isso já não soa como uma verdade, e isso é o mais importante. Que essas pessoas vão seguir existindo como antes, já sabemos, mas o importante é fazer que elas se calem e não tenham tanto poder de decisão, que voltem ao esgoto seres inomináveis, que se calem para sempre, seja por medo ou por vergonha, que se calem em suas estratosféricas ignorâncias bestiais, isso é um desejo básico da maioria verdadeira.
Porém, o problema não para por aí, sabemos que o Bozo representa uma antiga oligarquia muito presente em nossa história, o exército. E foi com essa força, apesar de ser um soldado raso meia boca, com péssimo histórico dentro da instituição, que sua figura representativa uniu em uma só pessoa todos os desejos egocêntricos, violentos e vil de uma casta, que retoma força em uma representação bestial apocalíptica. O Bozo não é nada, não interessa se é um lunático ou gênio, ele representa as famosas forças ocultas, que por sua vez de ocultas não têm nada. A casta militar.
Nesse sentido, eu seria asséptica em dizer que as marchas não têm efeitos concretos, muitas são os exemplos de quando as marchas foram ignoradas e tudo seguiu como se realmente as marchas não passassem de um festejo carnavalesco, uma festa de expurgação e catarse feita por meio do afeto e do efeito esperançoso da luta popular. As marchas acabam por se tornarem uma ferramenta eficiente de neutralização e controle da massa, ao contrário do sentimento comum de seus aliciados. O velho desejo de pertencer a um grupo que tão bem trabalha o liberalismo, também trabalha oculto nesse agenciamento.
Junto com isso a sensação de dever cívico e exercício de poder, ainda que seja autorizado pelo mesmo governo que se busca derrubar, serve de discurso aos governantes que, com bandeiras manchadas de sangue, apontam a direção. Algo de naive tem em tudo isso, algo que somente as pessoas boas podem sentir, creio eu, e aqui especulo, que pode ser aqui que reside o poder secreto das marchas! É a bondade necessária para crer que se pode mudar algo o ingrediente mais potente dessas manifestações, um poder que as mentes céticas como a minha não podem entender, mas não é necessário entender, se deve sentir o poder das marchas e assim espero que essa bondade seja mais potente e poderosa que as mentes cínicas de nossos governantes.
Mas então, seguimos com a pergunta: para que servem as marchas, se existe o voto, se existem as leis, porque o povo precisa ir para as ruas?
É preciso ir para as ruas porque é a única forma do povo ser povo. Enquanto se separam e uns dizem que uns são de esquerda outros não tanto, não existe povo, mas o poder do povo é segredo! O povo só é povo quando está na rua! O povo só é povo quando se junta neste carnaval de corpos, suor e delírio, o povo é movimento, o povo na rua é potência e o povo na rua é a única realidade. O resto são palavras que mudam de lado à mercê dos ventos.
O povo precisa ir para rua, justamente porque o voto democrático, diferente do que idealizamos, não representa o povo, representa talvez as debilidades humanas manifestas em divisões morais, mas não representa o povo. O voto por sua vez é resultado de uma manipulação mediática moralista que serve a determinadas camadas sociais que estão bem longe de ser a maioria e bem longe de ser o povo. A mídia, que trabalha para as oligarquias de sempre, manipula e destroça a força popular. O povo que não tem acesso ao poder, que não vê no Estado um aliado, se perde em promessas, porque suas leis também são feitas para servir e manter os poderes, esse povo que perde toda sua potência pela manipulação de informação e corrupção dos poderes, que nunca estiveram divididos, vai para ruas porque é única opção para mostrar sua indignação e desconformidade com a situação política atual, e é assim, em um ato de desespero, que o povo encontra sua identidade.
É nas ruas que o povo tem poder, é só nas ruas que o povo tem poder, é nas ruas que o povo encontra um lugar de fala, é nas ruas que nasce e se pode fazer escutar. As ruas são as veias onde o sangue da cidade corre e é somente nas ruas que se pode conseguir uma mudança. É na rua que o indivíduo deixa cair sua pele egoísta e se torna sujeito, a rua gera a metamorfose necessária.
Sim, o povo na rua causa preocupação, esse evento faz com que as forças manipuladoras tenham que refazer as contas da legitimidade e refazer seus planos de dominação, desestabiliza as bases de certeza, a força do povo na rua é muito mais forte que o próprio povo reconhece, o povo na rua é liberdade de possibilidades.
O povo na rua faz a terra respirar e o movimento é um poder em si mesmo. Movimento do corpo nesse lugar vazio é a única revolução possível, qualquer movimento é melhor que a morte, a inércia e as bocas caladas. Sim , é preciso gritar e colocar para fora toda indignação, verbalizar e dançar como deuses nas veias da pólis e acreditar que amanhã se pode recomeçar. Como um instinto de sobrevivência, o povo encontra nas ruas a fertilidade da vida e assim começamos a semana um pouco mais vivos.
Obrigada a todes que estiveram nas ruas!
Grace Maya
Buenos Aires
Maio 2021
Veste: Basura Fashionart
Foto: Ramiro Antico