“Um líder político inconsequente acarreta danos enormes a seu país.”
Fonte: Valor Econômico
A frase acima é de Carlos Alberto dos Santos Cruz, de 68 anos, ministro da Secretaria de Governo nos seis primeiros meses do mandato de Jair Bolsonaro (sem partido).
“Não vou faltar com o respeito”, prossegue o general, que não menciona o nome de seu ex-companheiro de esportes, a quem conheceu ainda jovem e chegou a ser vizinho na Vila Militar de Deodoro, no Rio. Só deixa explícito que tem sérias discordâncias de ponto de vista com o presidente da República.
Para Santos Cruz, o governo desperdiça a grande oportunidade que a sociedade lhe deu para atender aos anseios da família classe média conservadora, “cansada de escândalos e violência”, como a dele mesmo.
Ideologizaram o vírus, botaram uma coloração vermelha que seria da China, ideologizaram até mesmo um medicamento.
Bolsonaro, acrescenta Santos Cruz, se ampara em um pequeno grupo ideológico de fanáticos, “bandidinhos vagabundos com acesso a seu gabinete”. E perde o foco sobre os reais problemas do país, diz ele. “Medíocres, escória. Acham que podem manipular a opinião pública, enchem a paciência da população. Não vai colar, a população não tem essa motivação ideológica e vai responder nas urnas.”
Partiu desse “gabinete do ódio”, como ficou conhecido, reforçado pelo apoio dos filhos de Bolsonaro, o ataque que terminou por afastá-lo há um ano. Uma suposta conversa de WhatsApp, em que Santos Cruz teria criticado o presidente, foi a gota d’água. A Polícia Federal (PF) apurou e concluiu em janeiro que se tratava de uma montagem grosseira, mas o chefe do Executivo não se retratou, nem se desculpou.
O combate à corrupção, uma grande promessa de campanha, foi um dos principais motivos que o levaram a aceitar o convite para ocupar um dos quatro gabinetes do Palácio do Planalto mais próximos da Presidência. “A corrupção”, para o ex-ministro, “é o pior dos crimes, porque incentiva os outros crimes”. Mas o governo, em seu ponto de vista, não vem fazendo o suficiente.
A demissão barulhenta de Sergio Moro do Ministério da Justiça e Segurança Pública, que deixou o governo acusando o presidente de interferência na PF, é mais um revés: “Ele era um ícone, uma esperança de que era possível vencer os corruptos.
Em um ano colocou quase uma centena de empresários, políticos, poderosos, na cadeia. Os seguidos desacertos entre presidente e seus ministros causam balbúrdia, uma má impressão.
Com tristeza, no isolamento de seu sítio a 50km de Brasília, o general vê o Brasil galgar os primeiros lugares do mundo em número de óbitos na atual pandemia. “A cada vez que uma pessoa morre, morre um pedaço da gente”, diz Santa Cruz, que recorre a citação ao clérigo John Donne feita por Ernest Hemingway em “Por Quem os Sinos Dobram” (1940).
Os desencontros de orientações dentro do próprio governo agravaram os efeitos da pandemia no Brasil, afirma. “Ideologizaram o vírus, botaram uma coloração vermelha que seria da China, ideologizaram até um medicamento.” Extremismos, para ele, atrapalham o país, “não levam a lugar nenhum”.
Como a doença se espalhou inicialmente em outras nações, Santos Cruz diz acreditar que o Brasil poderia ter aproveitado a chance de enfrentá-la de uma maneira mais eficiente, com união e mais harmonia entre os Poderes. “Falta recuperar a credibilidade, a liderança, dar o bom exemplo, não adianta só reclamar.” Nenhuma das frases se refere diretamente a Bolsonaro, mas tem endereço certo. Os frequentes movimentos do capitão da reserva em direção aos quartéis e os apelos de participação das Forças Armadas lhe despertam estranheza. “Para quê? Se já recebeu 58 milhões de votos das urnas, agora é só governar.”
Todos os atos de um presidente têm consequências, afirma. “Precisa explicar para a população por que ir aos quartéis. Intervenção das Forças Armadas não tem cabimento no Brasil de hoje. É coisa que só passa na cabeça de uma minoria.” Santos Cruz tem reiterado sua posição: as Forças Armadas pertencem ao Estado, e não ao governo. O presidente só é comandante em chefe das Forças Armadas, destaca o general com firmeza, em situações muito especiais, de risco para o país. “Não é para a rotina. Tem que tomar cuidado com os valores básicos.”
Conhecido pela expressão facial pétrea, consagrada pelos cartunistas e fotógrafos no tempo em que foi ministro, o general recusa a fama de carrancudo. “Minhas emoções não variam muito mesmo. Mas uma coisa é a personagem, outra é a vida real. Não dá para viver uma personagem o tempo todo, é preciso separar.”
Seu semblante aparece mais relaxado e animado do outro lado da tela do celular, minutos antes do horário combinado para este “À Mesa com o Valor”, um ano exato após sua saída do governo, em 13 de junho. “Nada a comemorar, nada a lastimar. Acho que a saída foi boa para mim e para o governo.”
Para esta entrevista, o general trocou a “roça” de seu sítio onde tem trabalhado diariamente (“já tem manga, abacate, agora plantei um bananal”) pelo apartamento de Brasília, onde a internet é mais estável. A mesa ficou vazia. Durante quase duas horas de entrevista, o general não bebeu sequer um gole de água.
O almoço foi prometido para depois da pandemia. “Algo simples”, disse o militar, como as refeições que costuma fazer. Normalmente são preparadas sob orientação de sua mulher, Dora Regina, com quem é casado há 42 anos, tem dois filhos, uma filha e quatro netos. Nenhum deles seguiu carreira militar. “Nunca fui de pressionar”, explica, “o importante são os valores, honestidade, justiça”.
Não é boa ideia, aliás, convidar o general para um programa de almoço ou jantar fora. “Comer, para mim, não é programa, é uma atividade, uma necessidade.” Por isso, mantém quase inalterados os 74kg das cinco décadas que serviu ao Exército.
Já um convite para uma caminhada de três dias pelo sertão, dormindo no sereno, ele não recusa. É o que vem fazendo todos os anos, com amigos, na romaria de 120km entre Fortaleza e Canindé. “Não por religiosidade, mas pela conversa com os amigos e pelo que encontra pelo caminho. A gente vê o povo colhendo gravetos, mais finos que um dedo, para vender como lenha, por R$ 2,00 o feixe.”
O hábito de correr, que lhe rendeu a invejável marca de 12 minutos para percorrer 3,6 km, durante um exame médico de rotina aos 37 anos, teve que ser interrompido recentemente, “por problemas no joelho e da idade”. Devido à pandemia, deixou de lado os cavalos e a montaria. Mas, no sítio, garante, pega na enxada o dia inteiro e nem fica com dor nas costas. Diz que se diverte. É como voltar aos tempos de infância e adolescência, na zona rural da cidade de Rio Grande, litoral gaúcho, onde nasceu e se criou. “Hoje é periferia, né? Quer dizer, favela.”
Órfão aos três meses do pai – um capitão da Brigada Militar do Estado que morreu de infarto – e aos sete anos da mãe, que morreu de câncer, teve que dar duro com mais sete irmãos para sobreviver. “Foram tempos duros, sim, mas ficaram para trás. Foi uma epopeia.” E recita com o rosto mais alegre um verso do épico “I-Juca Pirama”, de Gonçalves Dias (1823-1864), decorado nos tempos de escola: “Não chores, que a vida/ É luta renhida/ Viver é lutar/ A vida é combate/ Que os fracos abate/ Que os fortes, os bravos/ Só pode exaltar”. Faz um gesto com a mão para espantar lembranças mais penosas. “Dei sorte. Estudei em colégio de madeira, mas com boa qualidade de ensino. Meus pais tinham boa cultura na época. Minha mãe veio de um internato de freiras, tocava piano em casa.”
De herança, recebeu pouco mais que uma estante com livros: a Bíblia; “Os Miseráveis”, de Victor Hugo (1802-1885); “Os Três Mosqueteiros”, de Alexandre Dumas (1802-1870); e outros títulos de aventura que o inspiram até hoje. “Se tiver aventura, pode me chamar.” O importante, ressalta, é que se dê oportunidade, como teve, para as pessoas furarem o bloqueio social.
Lamenta que o governo não esteja mais empenhado em abrir essas oportunidades. “Governo só faz sentido se tem o foco no social. Classe média, como nós, não precisa de governo.” Não faz sentido, para ele, toda estrutura de funcionalismo, tribunais de contas, fiscais da Fazenda, se o foco não for o social, para melhorar a vida dos mais carentes.
Com 16 anos incompletos, Santos Cruz entrou para a Escola Preparatória de Cadetes do Exército. “Foi um casamento por interesse, inicialmente”, diz. “Tinha um salário – pequeno é verdade-, casa e comida. Mas, depois, veio a paixão.” São 52 anos dedicados ao Exército. Ele diz que, quando ministro, a corporação limitou o seu salário pelo teto constitucional. O mesmo procedimento deveria ser seguido por todos os funcionários públicos, afirma.
“Revoltantes”, “vergonhosos”, “vexaminosos” são alguns dos adjetivos que emprega para qualificar os privilégios no Legislativo, Judiciário ou Executivo. “Pode ser legal, mas é imoral um funcionário receber R$ 1 mil na folha de pagamento e outro, R$ 100 mil.”
Durante seu tempo no governo, Santos Cruz espantou-se com os valores dos contratos que passaram por sua frente. “Gira muito dinheiro. Com todos os problemas, o Brasil está entre as dez maiores economias do mundo. Mas ocorrem vazamentos em todos os elos da cadeia de distribuição de recursos no país. É uma corrupção organizada, sistemática”, diz. “Com mais economia e combate à corrupção, daria para fazer muita coisa.”
Os brasileiros costumam ouvir a frase: “Somos um país rico, com um povo pobre”. Santos Cruz gosta de desfazer clichês. “É porque você não conhece o Congo, muito mais rico do que o Brasil”, diz o ex-ministro, sobre o país que é cenário do clássico da literatura “Coração das Trevas”, de Joseph Conrad (1857-1924), que descreve a exploração europeia nos tempos em que a mais cobiçada riqueza local era o marfim.
A República Democrática do Congo (RDC), colonizada pela Bélgica, estende-se sobre uma “anomalia geológica”, com petróleo, ouro, diamante, cobalto e urânio. “De lá veio o combustível para a bomba de Hiroshima”, afirma o general.
A Noroeste faz fronteira com a República do Congo, da capital Brazaville, com colonização francesa; e, ao Sul, com Angola, também muito ricos em minerais, mas tampouco países ricos.
Mais de 80% da população da RDC (101 milhões de habitantes) não têm sequer luz elétrica. A colonização, seguida por governos ditatoriais corruptos, deixou o país dividido entre diversos grupos que lutam por suas riquezas, numa das guerras mais sangrentas do mundo, que contabiliza mais de 6 milhões de mortos. A fronteira leste do país, com Uganda, Ruanda, Burundi e Tanzânia, é a mais conflagrada.
Foi a essa região que a ONU enviou o general Santos Cruz para comandar uma força multinacional de 23 mil militares, entre 2012 e 2013. Antes, ele desempenhava uma função civil na Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência, depois de ter passado para a reserva como general de divisão, sem ter ganho a quarta estrela, topo da carreira, embora tenha se destacado por onde passou e
recebido várias condecorações.Na República Democrática do Congo, a ONU designou o general para comandar a primeira missão da história da organização com autorização para ações ofensivas contra grupos que ameaçavam a população civil. Também foi a iniciativa mais cara da história das Nações Unidas, depois que a instituição foi criticada internacionalmente por sua inércia diante dos massacres em Ruanda e no próprio Congo, com milhares de mortes diárias.
Seu batismo de fogo, como “Force Commander” dos Capacetes Azuis (as tropas multinacionais que servem nas Forças de Paz da ONU), foi na cidade de Goma, a mais populosa da região, com 1 milhão de habitantes. Ela estava havia meses sob cerco do grupo M-23, financiado pelos países vizinhos, que tinha como método cortar a cabeça dos homens das aldeias e desfilar com elas em pontas de lanças durante dias para aterrorizar as populações. Incêndios de casas, estupros e recrutamento forçado de meninos eram outros dos métodos empregados pela milícia.
Para romper o cerco à cidade, as tropas comandadas por Santos Cruz combateram por dez dias de fogo cerrado, com dois mortos e 25 feridos entre os Capacetes Azuis e centenas de mortos e feridos no Exército do Congo. Do lado dos guerrilheiros o número de mortes não ficou conhecido. Uma grande quantidade de armas foi apreendida e abandonada na debandada do grupo rebelde. Há poucos dias, Bosco Ntaganda, um dos comandantes do M-23, apelidado Terminator, foi condenado por crimes contra a humanidade pelo tribunal de Haia.
A atuação de Santos Cruz mereceu um documentário no canal internacional da Al Jazeera, além de elogios da ONU. Chama atenção no documentário que o “Force Commander” primeiro estende a mão em cumprimento nos encontros com os militares subordinados de outros países, mas é saudado com continências e posição de sentido. Depois retribui a continência, com um tapinha no ombro, bem brasileiro.
O general explica que normalmente há um distanciamento maior entre os comandantes e os comandados. “Há um respeito muito grande. Mas procuro sempre me aproximar dos oficiais, sargentos, soldados, porque eles é que estão na linha de frente e, sem eles, nada acontece.”
O Congo foi o maior desafio de sua carreira. É um país enorme, como explica, segundo maior da África, pouco menor que o primeiro, Argélia, com aproximadamente um quarto da extensão territorial do Brasil.
Foi importante, mas não dá para ficar feliz quando há tantas mortes envolvidas. E a rapaziada que morre dos dois lados é a mais jovem e mais pobre, enquanto os governantes, políticos e poderosos ficam impunes.”
A maior satisfação da guerra é restabelecer a paz, observa. Sua maior recompensa foi ver mais de 100 mil pessoas que estavam refugiadas nos países vizinhos voltando para suas casas – “Aquelas longas filas de gente com roupas coloridas, carregando seus pertences e crianças”. Uma das cidades da região Pinga tinha 6,5 mil habitantes antes da missão da ONU. Quando terminou, havia 25 mil.
Uma das comunidades liberadas da cidade de Goma presenteou Santos Cruz com um bastão de madeira, esculpido com um elefante no topo – um símbolo dos chefes locais e liderança para diversas etnias africanas. Essa é uma das raras lembranças de suas mais de 50 viagens pelo mundo que o general levou para seu apartamento em Brasília. “Prefiro guardar na memória.”Mas há exceções. Da comunidade de haitianos em Nova York, pelo comando da missão de paz entre 2006 e 2009, trouxe um emblema com os dizeres: “Pela inspiração de que um homem pode fazer a diferença entre a guerra e a paz”. É uma linha fina entre a vitória e o fracasso, comenta o general.
Em seu discurso em Nova York, depois da missão no Haiti, contrariou outro clichê sobre os melhores shows do mundo serem exibidos na Broadway. “Vocês estão enganados. O maior show do mundo que eu vi foi o dos soldados brasileiros no Haiti. Numa noite foram trocados mais de 10 mil tiros, sem uma única vítima entre inocentes.
Uma criança atingida, e seria o fim de nossa missão”, diz, emocionado sobre a operação de pacificação em Cité Soleil, a maior favela da capital haitiana, Porto Príncipe, que tinha fama de ser a mais violenta do mundo. Sobre o Haiti, sua recomendação de leitura é “O Reino Deste Mundo”, de Alejo Carpentier (1904-1980). Seu comando, o mais longo à frente da Missão de Paz das Nações Unidas no Haiti (Minustah), chamou a atenção do então secretário-geral da ONU Ban Ki-Moon, que pediu ao Exército brasileiro, sem sucesso, para prorrogar a missão de Santos Cruz no Haiti. Em seguida, o sul-coreano convidou o general a elaborar uma proposta para uma intervenção mais efetiva das forças de paz na África. Depois da passagem pelo Congo e Haiti, o brasileiro passou a ministrar cursos de treinamento para outras missões militares em outros países. Em 2018 estava em Bangladesh, quando foi indicado por Bolsonaro para compor seu time ministerial.
Apesar das situações precárias e adversas dos dois países africanos, Santos Cruz é taxativo ao comparar as regiões com o Brasil. “Aqui é pior.” A desigualdade aqui, segundo ele, não tem comparação com a de qualquer país que conheceu. “Se uma pessoa se afastar 15km de qualquer capital brasileira, vai conhecer situações horripilantes, de fome, violência e abandono.” O Exército brasileiro sofreu mais no Rio do que em qualquer outro lugar, afirma o general, que foi secretário nacional de Segurança Pública, no governo Temer.
Depois que saiu do Planalto, Santos Cruz não dirigiu mais a palavra ao ex-colega de farda. “Não acho que o governo piorou, mas as dificuldades de administrar conflitos e de se relacionar de maneira harmônica com os demais Poderes e outros setores da sociedade têm ficado mais evidentes.”
Ele vê incoerência entre os tempos da campanha e a prática atual do presidente. “Na campanha, criminalizou as negociações políticas, agora elogia. Em 2018, era contra a reeleição, hoje parece que tudo é feito com o olho em 2022.” Procurado pela reportagem, o Palácio do Planalto preferiu não se manifestar sobre as declarações de Santos Cruz.