Nem tudo está perdido

Carlos Fernando Galvão

Estado mínimo é balela discursiva dos pseudo-liberais que conhecem muito bem os caminhos para manter a rentabilidade do capital, às custas da exploração das pessoas

Por Carlos Fernando Galvão para o Le Monde Diplomatique-Brasil
Compartilhado por Central de Jornalismo

Para o geógrafo David Harvey, há uma taxa quase mística de crescimento para uma economia de mercado capitalista, informalmente estimada, que seria de 3%. Se mantida anualmente, por muito tempo, levaria o capitalismo a encontrar saídas para os períodos de baixa do rendimento acumulado das taxas de retorno do capital (mais-valia), o que indicaria, para Harvey, um problema sistêmico do capitalismo, relativo à absorção do excedente de capital.

Onde o capitalista pode investir o capital acumulado, para que continue a ser acumulado e a se concentrar nas mãos do capitalista, sem causar a carestia (inflação) que corrói seu patrimônio privado? A desvalorização patrimonial, pelo sistema capitalista, que protege a propriedade acima de tudo, é evitada com medidas legais e impostas pelo Estado, que é aparelhado pelo capitalista para que ele continue um capitalista de sucesso – explorando o suor alheio e enriquecendo pelo esforço de quem tem apenas a chance de sobreviver, quase vegetativamente.

Estado mínimo é balela discursiva dos pseudo-liberais que conhecem muito bem os caminhos para manter a rentabilidade do capital, às custas da exploração das pessoas; esse Estado é a garantia, via políticas públicas restritivas, de mudanças drásticas nas estruturas sociais, políticas e econômicas que deixam tudo como sempre foi: quem tem, fica com mais, em progressão geométrica; que não tem, não só continua a não ter, com permanece com suas perdas, também em progressão geométrica. É como se fôssemos “contribuintes” no tocante ao pagamento do boleto relativo aos custos da festa do capital, mas, concomitantemente, não pudéssemos entrar no salão. Quando muito, nos deixam manobrar a Ferrari.

Desde o início da Revolução Industrial até a crise de 1929, com o período variando um tanto entre os estudiosos do tema, como Harvey, o problema acima exposto não foi grande o suficiente para atrapalhar, efetivamente, o desenvolvimento produtivo e comercial, porque o capital, enquanto força social e política e enquanto relação econômica, estava se formando ainda e não havia grandes e disseminados excedentes. Estima-se, contudo, nos dias atuais, que até meados deste século XXI, o PIB (Produto Interno Bruto) mundial possa atingir US$100 trilhões (estimativa da ONU). Agora sim, a questão do excedente de capital ou, melhor, a questão das possibilidades de sua reprodução ampliada, seguindo a velha fórmula marxista D-M-D´ (dinheiro que gera mercadoria que gera mais dinheiro), está ameaçada e já desde o início dos anos 2000, com a crise das subprimes de 2008 bem o demonstra.

Como manter estruturas rentáveis para o excedente de capital? Como não provocar uma queda brusca nas taxas de acumulação pela inundação de dinheiro que poderá levar a uma queda grande no valor das moedas fiduciárias (títulos públicos que valem por si mesmos, em confiança ao que expressa e que não se lastreiam em nenhum metal, como outro e prata) que, se hoje em dia rendem elevadíssimos lucros aos poucos que as detém, poderão se desvalorizar sobremaneira?

O argumento de que os capitalistas (re)investirão seu capital acumulado no sistema produtivo, gerando riqueza e empregos (distribuindo renda? – faz-me rir!), não procede. Ao menos no Brasil, quando isso, efetivamente, aconteceu? Senão, de modo tênue, isso foi possível, apenas, dadas as estruturas carcomidas e viciadas do poder elitista brasileiro, de modo conjuntural e em períodos pontuais de nossa História, como, em termos monetários, no governo Itamar Franco e no primeiro governo Fernando Henrique Cardoso, mas especialmente e sobretudo, pelas políticas sociais nos dois governos Lula e no primeiro governo Dilma Rousseff. O retrocesso com o atual (des)governo é enorme, mas não falemos disso, por agora; um dia, a tempestade passa e quando esse dia chegar, teremos muito a discutir e a fazer para reconstruir este país.

Em 2019, fechamos com 13 milhões de desempregados; 40 milhões de subempregados e de 20 a 30 milhões de trabalhadores na informalidade (dados do Ministério da Economia). Esse é o Brasil atual; agora, em 2020, não houve qualquer melhora substancial; pelo contrário, pioramos e não apenas por conta da pandemia, posto que vínhamos piorando desde antes. Afirmar o contrário é mentira. Com a excessiva financeirização do capital, os poucos rentistas ganham muito com juros e investimentos em alta tecnologia. Como dizia o geógrafo brasileiro Milton Santos (1926-2001), apenas o “homem veloz” ganha.

Segundo estudo da Oxfam, prestigiada instituição internacional de pesquisa, em 2017, 82% da riqueza planetária ficou concentrada em 1% da população e praticamente nada restou para os 50% mais pobres do mundo. A situação não mudou de lá para cá. Em números: o mundo tem, segundo a ONU (Organização das Nações Unidas), aproximadamente 7.5 bilhões de pessoas; o 1% que ficou com 82% da riqueza produzida equivale a 75 milhões de pessoas; 3.5 bilhões dividiram quase os 99% restantes da riqueza; os restantes 3.8 bilhões, ou seja, 50% da população mundial, usufruiu virtualmente nada da riqueza mundial, recebendo doações e migalhas, por assim dizer, do banquete VIP (Very Important People). E isso tudo é mantido pela força das armas ou pela manipulação midiática e eleitoral.

Como podemos dormir em paz em um mundo assim? Como pensar em um mundo bom e justo, com pessoas ruins, que deixam morrer seus semelhantes, por egoísmo, ganância e, não raro, apenas por serem diferentes? Sem respostas aqui; busquemo-las coletivamente.

E o Brasil, nesse quadro? A austeridade pregada por essas plagas, como a que promoveu o congelamento dos gastos públicos por 20 anos através da PEC 95 (Proposta de Emenda Constitucional 95), aprovada no (des)governo Temer, e medidas draconianas e expropriadoras de direitos como a da Reforma da Previdência Social, junto com a derrubada eventual de políticas públicas como a do Bolsa Família e a aniquilação de direitos trabalhistas, como o contrato temporário de trabalho e a recontratação com salário mais baixo (dentre outras barbaridades escravocratas), provavelmente levará, segundo estimativas de estudiosos da área, até 2030, se não for revertida, a catástrofes como o aumento crescente do nível de mortalidade infantil – que havia sido praticamente erradicada nos governos petistas e já recomeçou, infelizmente, a maior precarização do mercado de trabalho, a queda brutal no nível de escolaridade dos cidadãos, transformados em “contribuintes” e meros “trabalhadores horistas”…

E lugares como o Rio de Janeiro, nesse quadro? Para eliminar as favelas, politicamente renomeadas de “comunidades” (ou “quebradas”, como em São Paulo), nossos gestores públicos estão acabando com o analfabetismo, melhorando a abrangência e a qualidade do atendimento da saúde, aprofundando a assistência social e gerando empregos, além de baixar impostos? Não, estão buscando propostas como mudar a designação dessas áreas urbanas para, por exemplo, “zonas residenciais multifamiliares”. Alguns chamam “locais de moradores de baixa renda”, outros de “Áreas de Especial Interesse Social” (AEIS).

Decisões como essa abriram espaço para que as favelas (áreas sem infraestrutura urbana, em termos de mobiliário e condições dignas de vida) não deixassem de ser assim classificadas e passassem a ser denominadas pelo eufemismo de “comunidade’” e isso pode abrir caminho para arbitrariedades, como remoções forçadas. Há mapas em que no lugar onde estava uma favela, no mapa, nada aparecia, como se fosse uma área de mata virgem e/ou desocupada. Como essas pessoas que, por conta de um sistema social, político e econômico injusto, são tornadas pobres e sem poder, podem sair desta condição se as políticas públicas que a elas beneficiariam são conduzidas com essa invisibilidade toda, inclusive e, especialmente, no tocante à invisibilidade não apenas de seus lugares, como delas mesmas?

E nós, cidadãos, nesse quadro? Se nos conformarmos com o lugar social que as elites poderosas, independente da ideologia que professem, querem nos destinar, permaneceremos subalternos eternamente, pagando boletos e agradecendo por sermos explorados, já que, como os números aqui expostos bem o demonstram, bilhões sequer explorados têm sido. É isso o que queremos para nós? É esse mundo que legaremos para nossos filhos e netos?

Como o escritor austríaco Karl Kraus (1874-1936) disse que “o otimista acha este o melhor dos mundos; o pessimista tem absoluta certeza disso”. Já passou da hora de acreditar, junto com os pessimistas, que este é o melhor dos mundos, ou mesmo o mundo possível e, portanto, o melhor que temos ou podemos ter. É hora de mostrarmos para nós mesmos que este mundo tem jeito e que ele pode ser diferente e melhor, empunhando certo otimismo realista e realizador e não apenas, devaneador, para não nos iludirmos novamente.

Carlos Fernando Galvão é geógrafo e pós doutor em Geografia Humana

Administrador

Fonte Segura: Central de Jornalismo

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