A genialidade da Globo em alimentar o racismo estrutural

Por Dandara Palmares/Mídia 4P
Compartilhado por
Central de Jornalismo

Muitos de nós já sabemos que quem controla o discurso controla o poder. Quem detém o poder de projetar, visibilizar vozes, narrativas e determinadas representações sociais detêm o poder de definir o que merece ser discutido e o que deve ganhar importância.

A Rede Globo, desde que foi criada, por exercer hegemonia no campo da comunicação, tem grande controle sobre os discursos e as representações sociais no país. Ela tem um papel fundamental na construção do nosso imaginário, do nosso inconsciente coletivo, porque é a maior produtora de narrativas, de telenovelas, que fazem tanto sucesso junto ao povo brasileiro. Como diz o mestre Antônio Cândido, precisamos nos nutrir de narrativas para suportar a vida, e as telenovelas são antes de tudo, narrativas feitas para nos entreter e nutrir o nosso imaginário.

E, qual foi o imaginário, ou seja, que imagens, a Globo promoveu nos anos de sua existência? Apenas para citar dois exemplos recentes, trago aqui duas telenovelas que estão sendo reprisadas, justamente porque foram campeãs de audiência: Laços de família e A força do querer. O recorte que eu vou fazer aqui é racial, diz respeito a que imagens a Rede Globo produz sobre pessoas negras, a partir de suas telenovelas.

Na novela Laços de Família, exibida no ano de 2000, há quatro personagens negras: a empregada doméstica Zilda, vivida por Thalma Freitas, a Irene, vivida pela saudosa atriz Cléa Simões, que na trama é babá de Ciça, filha do Miguel (Tony Ramos), e o médico Laerte, vivido pelo ator Luciano Quirino. A quarta personagem é uma jovem negra, que atua como trabalhadora doméstica, também na casa do Miguel, mas, que não eu não vi ainda ser mencionada, sequer pelo nome.

Nos papéis exercidos pelos personagens, no caso da Zilda e da Irene, chama a atenção o fato de que elas não têm família, não tem presente passado e futuro. As suas vidas resumem-se a viver as vidas dos seus patrões. Zilda sofre quando o filho da patroa é espancado, sofre quando a filha da patroa tem leucemia. Mas, ninguém sabe quais são as suas próprias dores. Elas não são representadas na trama. Pela forma como é representada, Zilda não tem dramas pessoais, não tem a sua própria história, a sua existência se justifica para que ela seja reduzida a serviçal da protagonista, em todos os sentidos. A vida dela está a serviço da branquitude.

No caso de Irene, isso é levado às últimas consequências porque ela, durante longo tempo, foi a babá de Ciça, a filha impertinente do Miguel. Ela não teve os próprios filhos. Na velhice, ela é transformada em “parte da família”, porque foi o que lhe restou. Ela, assim como Zilda, não tem os próprios dramas, os próprios projetos, a própria vida, representados. A vida de Irene é o que será a vida de Zilda. Uma velhice na casa dos patrões, por não ter dito o direito de viver a própria existência. Qualquer semelhança com a história de Madalena, que foi explorada por mais de 30 anos, por uma família mineira, que achava muito natural fazê-lo, não é mera coincidência.

O personagem negro que foge a essa representação subalterna é o médico Laerte, vivido por Luciano Quirino. Mas, observem que, apesar de ser médico, Laerte não se relaciona com uma médica, não tem contato com o núcleo destacado da trama. Em alguns episódios ele aparece exatamente no lugar onde a branquitute costuma colocar negros bem sucedidos. Ele aparece com os funcionários da clínica, aqueles que são representados nas tramas da emissora como sendo os que têm menos prestígio social, porque são sempre reduzidos a coadjuvantes.

E, embora a Globo tenha editado a cena, na praia, em que as atendentes conversam sobre ele, a gente se lembra de que, na exibição original da novela, ele era tratado como o garanhão, o bem dotado que suscitava a desejo das mulheres ao seu redor. Não é a condição de médico bem sucedido a camada mais evidente do personagem, é a história do homem que cria o filho sozinho, e que se enquadra no estereótipo do preto desejado, porque bem dotado. No diálogo cortado pela Globo, uma das personagens, Márcia, diz: “Uma vez, eu era bem mocinha, tinha uns 18 anos, eu namorei um negro. Namorico de escola. Foi tão bom. Nós vivemos momentos intensos, ardentes para ser mais precisa (…) Dizem que eles são umas coisas, que Deus foi extremamente generoso com a raça. Uma coisa assim… Notável”.

Eu poderia ainda colocar em discussão o caso da Juliana Paes, que vive a Ritinha, e ocupa o lugar reservado às mulheres negras, na maioria das telenovelas globais, que é o lugar de empregada doméstica. Por ser lida como uma mulher negra de pela clara, Ritinha não vive só uma condição de subalternidade, mas é assediada sexualmente de maneira implacável pelo patrão, até que sede aos apelos dele. O núcleo de empregadas da trama define bem o ditado popular do Brasil colonial: “As brancas são para casar, as pretas são para a cozinha e as mulatas para os prazeres da carne”.

Esse foi o imaginário coletivo que a Rede Globo ajudou a construir: mulheres e homens negros em posições subalternas, hipersexualizados, desumanizados, a serviço da existência da branquitude. Mas, alguém poderia achar que isso é algo do passado, afinal a novela foi produzida e exibida há 20 anos. No entanto, se olharmos para a A Força do Querer, exibida em 2017, portanto, recentemente, a gente vai observar que, para a Rede Globo, mulheres negras reduzidas a serviçais da branquitude é a tônica das suas produções. Na novela, que também está sendo reprisada agora, a personagem negra que aparece mais recorrentemente na trama é Marilda, vivida pela atriz Dandara Mariana.

Marilda é a melhor amiga de Ritinha (Isís Valverde) a personagem boa de coração, mas, completamente inconsequente, que está sempre se metendo em confusões e encrencas que envolvem a história entre o Zeca (Marco Pigossi) e o Ruy (Fiuk). Marilda, assim como Zilda, Ritinha e Irene de Laços de Família é representada como alguém que não tem história, nem passado, nem futuro. Não se tem registro de que ela tenha família, de que ela tenha seus dramas e conflitos pessoais. Ela vive como a “dama de companhia” de Ritinha e atua remendando, apaziguando e remediando as trapalhadas dela. Só agora que a novela caminha para os capítulos finais é que ela está sendo paquerada por um personagem secundário feito pelo ator Mussunzinho.

Racismo Estrutural é sobre isso, é sobre ter uma sociedade que naturaliza que pessoas negras sejam reduzidas a serviçais de pessoas brancas. A Globo, que tem em toda a sua cúpula homens brancos, talvez não se reconheça racista, porque para ela, racismo é espancar um homem negro no Supermercado ou xingar um jogador de futebol de macaco em uma partida com visibilidade internacional. A maioria das pessoas está presa a essa ideia de que ser racista é assumir comportamentos extremos. Mas, é preciso lembrar de que, como crime perfeito que é, o Racismo opera meticulosamente, nos detalhes, mantendo pessoas negras no lugar que a branquitude lhes reservou: o lugar da subalternidade.

Na última “Década”, como informou a Folha de São Paulo, pessoas negras acessaram em número muito maior à Universidade. O primeiro governo de esquerda, em quase 500 anos de história do Brasil, criou a Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, colocou dentro de sua estrutura institucional Matilde Ribeiro, uma mulher com a vida dedicada à causa do Movimento Negro. Esse movimento social é o grande protagonista de uma luta histórica que redundou nas políticas de promoção de equidade étnico-racial, como as cotas raciais, as políticas afirmativas, a presença de pessoas negras nas universidades públicas. A chegada de mais pessoas negras à universidade provocou a mudança nas agendas de pesquisa e deu visibilidade para a causa, colocando o debate na ordem do dia. De uma forma ou de outra, toda a sociedade foi provocada a pensar sobre racismo de uma maneira nunca vista antes.

Em 2020, com o Movimento “Vidas Negras Importam”, serviu de lente de aumento e catalisador da luta do Movimento Negro. O país foi tomando um pouco mais de consciência da necessidade de ouvir as narrativas e prestar atenção às histórias de pessoas negras. Elas, então, conquistam destaque nos Reality Shows, Thelminha vence o BBB 20, Jojo Todinho, conquista o prêmio máximo em “A Fazenda”, Lucy Ramos é campeã na Dança dos Famosos, Jenifer, em 2019 tinha conquistado o “Pop Star”.

Finalmente era possível jogar por terra a narrativa de que os brancos são superiores aos pretos- porque no Brasil, a narrativa promovida pelas nossas telenovelas é de que a beleza, a inteligência, a força, a intelectualidade, o talento são brancos. A Globo se vê, então, pressionada a aumentar o número de pessoas negras na sua grade de programação e opta pelo que a gente chama de Tokenismo, que é quando você coloca alguns negros em determinados espaços para se livrar da acusação de que seja racista.

Por outro lado, se nem a pauta e nem a luta antirracista são um valor real para a emissora, que pactuou com a Ditadura Militar, que chancelou o golpe contra a presidenta Dilma e, que produziu o antipetismo e o antilulismo, movimentos que foram decisivos para que Bolsonaro chegasse ao poder, ela não deixaria que a agenda antirracista seguisse em um crescente, ganhando cada vez mais terreno e visibilidade, e forçando-a a rever a sua política interna, organizada a partir do Racismo Estrutural. Para a Globo, assim como para a elite econômica brasileira, discutir racismo significa reconhecer e abrir mão de determinados privilégios. Isso seria pedir demais para quem sempre promoveu e lucrou com estruturas sociais injustas.

Qual a melhor forma de frear, ou mais ainda desqualificar, silenciar e deslegitimar a pauta antirracista no Brasil, de forma que isso influencie as próximas eleições? O caminho mais rápido e mais efetivo seria dar um grande palco e destaque para aquelas pessoas que se sabe que prestariam um desserviço à causa. Lumena é conhecida como a “ativista lacradora”. Antes de entrar no BBB 21 já tinha grande fama de extremista, fundamentalista, fama essa bem conhecida pela emissora. Karol Conká é alguém com quem a Globo já fez várias parcerias e conhecia bem o temperamento, a performance e a dinâmica. Nego Di, antes do BBB, tinha se envolvido em uma grande polêmica, por durante uma live, assumir comportamentos machistas.

Todos eles tinham o perfil ideal para que, no lugar de narrativas qualificadas sobre uma agenda antirracista, fossem evidenciadas representações, discursos e práticas que ressuscitassem o Mito da Democracia Racial, a ideia de que, no Brasil, para o bem e para o mal somos todos iguais, portanto, cotas raciais e ações afirmativas são iniciativas injustas e desnecessárias. É verdade que a Globo não teria como prever o andamento de tudo dentro do BBB, mas, ao fazer a seleção dos participantes, ela definiu que narrativas queria privilegiar. E ela escolheu exatamente aquelas narrativas que serviriam para ridiculizar, desqualificar a agenda antirracista e suscitar ainda mais ódio por pessoas negras.

O Brasil foi um país escravocrata por quase 400 anos, explorou pessoas negras até a morte, e mais, depois de alforriá-las, naturalizou as interdições cotidianas de liberdade, na esperança de que morressem e pudesse ser criado um Estado Branco Supremacista, em que a presença negra fosse varrida da história. O Brasil é um país tão racista que a Constituição Brasileira de 1934 defendia uma educação eugenista, ou seja, uma educação que tivesse como princípio a celebração da supremacia branca.

Somos um país que criou Fazendas de Estupro, onde mulheres negras eram violentadas para procriar escravos, como se fossem animais. Nos últimos anos do processo de escravidão no país, o Brasil privilegiou o tráfico de meninas, porque era uma forma de garantir o nascimento de mais pessoas negras para serem escravizadas e que, em sendo escravizadas, desde a infância, teriam uma vida útil e produtiva por mais tempo. Somos o país que a cada 12 minutos mata um jovem negro.

Nós, pessoas negras conhecemos bem a crueldade e a perversidade histórica desse país contra o povo negro. Não nos surpreende que a Rede Globo que é racista e supremacista branca transforme o BBB 21 em uma arena que, ao mesmo tempo em que explora o sofrimento psíquico de pessoas negras, ridiculariza, tripudia e desqualifica a agenda antirracista no Brasil, privilegiando representações práticas e discursos que endossam os estereótipos de que negros são violentos, agressivos, bárbaros, tacanhos, mesquinhos e rasteiros. Ignorar a diversidade e a complexidade de pessoas negras, negando-lhes o direito de ser quem são, e impondo-lhes a obrigação de que sejam o que se espera que elas sejam, é uma forma perversa de racismo. O que o BBB 21 está fazendo, é o que o Brasil faz há mais de 500 anos, e a Rede Globo faz desde que foi fundada- desumanizar, explorar e matar pessoas negras (começando pela morte simbólica).

Você, como eu, pode odiar a Globo por ela ser racista, por ter produzido o antipetismo, por ter apoiado à Ditadura Militar, mas nós temos que admitir, ela sabe bem como reinventar e alimentar o Racismo Estrutural. Quando o assunto é lucrar com a exploração dos corpos negros, a Globo usa toda a sua “genialidade”. Não subestimem o racismo. Ele é dinâmico e de mãos dadas com a busca pelo lucro a qualquer custo, sabe bem o que fazer para continuar vivo e operante.

Dandara dos Palmares é pseudônimo de uma grande escritora que insiste em não assinar seus artigos publicados neste humilde Midia 4P

Administrador

Fonte Segura: Central de Jornalismo

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *