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Com crise, famílias ficam sem comida na mesa e usam farofa e biscoito para enganar a fome

Por Marcela Lemos
/Ricardo Borges/UOL
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Central de Jornalismo
12 de julho de 2021

O Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas (WFP) estima que o Brasil tenha hoje 9% da população subalimentada. Caso a projeção se confirme, o país entrará novamente no mapa da fome.

“Eu sei o que é passar fome. Quando falta comida, a gente corre com a venda de reciclado para não deixar os filhos sem nada. Já aconteceu de eu deixar de comer para dar para eles. Agora, com a pandemia ficou tudo mais difícil porque as coisas aumentaram muito de preço.”
O relato é de Maria Cristina Batista Soares, 38, que vive com o companheiro e os três filhos em uma casa na região conhecida como Fazenda dos Mineiros, no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, cidade da região metropolitana do Rio.
Maria e o filho mais velho vendem material reciclado, mas o número de catadores aumentou na cidade. Ela diz que a renda familiar encolheu, e o preço dos alimentos disparou. Hoje a venda de plástico e de alumínio rende até R$ 300 por mês. O orçamento é reforçado com o auxílio emergencial pago pelo governo no valor de R$ 375.
No dia em que o UOL visitou a família, há duas semanas, Maria e os filhos se alimentaram com um pão pela manhã. Para o almoço havia arroz, feijão e ovo.
A família de Maria Cristina é assistida pela Associação Oficina de Vida, que mantém uma creche no interior da comunidade e atende 80 crianças entre dois e cinco anos de idade. Além de funcionar como escola, serve refeição aos alunos, distribui cestas básicas e quentinhas para as famílias da comunidade. A creche se mantém com doações.

Brasil pode voltar ao mapa da fome
A realidade de Maria é também a de muitas outras famílias de todo o país. O Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas (WFP) estima que o Brasil tenha hoje 9% da população subalimentada.
Caso a projeção se confirme, o país entrará novamente no mapa da fome – um levantamento divulgado pela ONU (Organização das Nações Unidas). Para que o país apareça no estudo, é necessário que mais de 5% da população esteja na situação de insegurança alimentar, ou seja, sem acesso pleno e permanente a alimentos, como no caso da família visitada pelo UOL.
De acordo com Daniel Balaban, representante do programa no Brasil e diretor do Centro de Excelência contra a Fome, a situação brasileira começou a se agravar ainda em 2016 e se deteriorou após a crise sanitária do novo coronavírus.
“Não podemos colocar a fome exclusivamente na conta da covid-19. A fome já vinha crescendo nos últimos cinco anos em decorrência da retirada de recursos de programas sociais. Hoje, a fome é fruto das escolhas que o nosso Congresso fez e o custo da miséria é maior que o investimento para evitá-la. O número de pessoas pedindo comida na rua quadruplicou e a pandemia acelerou ainda mais esse processo.”
Ricardo Borges/UOL

Familia de Rosania Duarte da Silva em sua casa no Complexo da Mangueirinha, em Duque de Caxias (RJ)
Sem auxílio emergencial
O auxílio emergencial, que acaba de ser prorrogado, não chegou a todos os necessitados.
Em Duque de Caxias (RJ), na Baixada Fluminense, Rosania Duarte da Silva também vive em situação de vulnerabilidade na localidade conhecida como Beco do Aquário – região rural no Complexo da Mangueirinha.
Ela e os quatro filhos vivem em uma casa pequena no alto da comunidade. A cama divide o espaço com o fogão e a geladeira praticamente vazia. No dia que o UOL visitou a família, Rosania estava sem comer desde o dia anterior.
“Hoje minha filha só comeu biscoito, eu não como desde ontem, precisei guardar a comida que ganhei para os outros filhos. Eu saio para pedir comida de porta em porta. Só assim que a gente come. Eu peço arroz, feijão e linguiça. Hoje, a gente não comeu ainda”, disse.
A Maria Luísa, sua filha de seis anos, comeu um biscoito que a vizinha deu para ela; já a mãe deixou de comer para alimentar os filhos. “Durmo com fome às vezes”, diz Rosania.
A ex-moradora de rua não conseguiu obter o auxílio emergencial do governo nem neste ano nem no ano passado devido a problemas na documentação. Sem trabalho, a família vive com assistência dos vizinhos e da ONG “Embaixada do Bem” que atua há dois anos na região distribuindo cestas básicas e reforçando moradias.
Prato reforçado com farofa
Desempregada desde o início da pandemia, Alessandra Gonçalves Moura, 40, moradora de Nova Iguaçu (RJ), na Baixada Fluminense, conta que precisa racionar a comida ou reforçar o prato com farofa para a família formada por seis pessoas.
“Eu reforço o prato com farofa para não ficarem com fome. Se acabou de comer e ainda está com fome, dou biscoito ou falo para beber água. A comida precisa ser dividida”.
Alessandra trabalhava como babá, mas no início do ano passado precisou deixar o emprego para tomar conta das duas filhas e das duas sobrinhas que pararam de ir para a escola por causa da pandemia.
A família passou a viver apenas com o salário do irmão de Alessandra – mas o valor, de um salário mínimo, tem sido insuficiente para bancar dois adultos e quatro crianças, que têm entre cinco e 16 anos de idade.
Segundo ela, o salário permite pagar apenas as contas da casa. Com isso, as refeições dependem de cestas básicas que Alessandra ganha do projeto “Faixa Preta de Jesus” que atende a 400 famílias por mês na região.
Ainda que essa família consiga ajuda para comer, a economista e professora do Ibmec do Rio de Janeiro, Vivian Almeida, explica que essa situação de alimentação precária também configura insegurança alimentar.
“Na verdade, isso é também uma piora de investimento em capital humano. Quando uma população se alimenta de forma pior, a gente vai contratando um futuro mais precário. É um problema de renda que reflete no sistema de saúde, na segurança, em todos os âmbitos da sociedade”, alerta a professora.
Ricardo Borges/UOL

Pandemia e exportação fazem faltar alimentos
O Mapa da Fome é um documento oficial das Nações Unidas feito pelo WFP e outras agências. O mapeamento permite a elaboração de projetos de segurança alimentar e nutricional e auxilia no desenvolvimento de políticas públicas. O Brasil deixou o mapa em 2014 e oficialmente, ainda não voltou a integrá-lo.
A edição de 2020 do levantamento, que conta com dados oficiais do IBGE, mostra o país com menos de 3% da população subalimentada entre 2017 e 2019. No entanto, outras pesquisas já indicam o retorno do Brasil ao mapa que terá uma nova edição divulgada em agosto.
A professora Vivian Almeida explica que a condição de insegurança alimentar das famílias sofre a interferência de um conjunto de fatores, mas que a redução do orçamento é determinante para o cenário atual.
“A pandemia restringiu o orçamento e, quando acabou o auxílio emergencial de R$ 600, as pessoas acabaram voltando para a condição de pobreza”, diz a professora.
Além disso, no ano passado os preços dos alimentos produzidos pelo Brasil estavam muito competitivos e houve muita demanda externa. “Exportamos muitos bens, e isso fez com que o preço aqui dentro subisse. Teve também a fuga de capital estrangeiro e isso também fez com que os nossos preços, que são determinados pela moeda estrangeira, subissem.”
Daniel Balaban diz que a solução para o país é voltar a destinar recursos para programas sociais.
“O auxílio emergencial é fundamental neste momento. É necessário oferecer renda básica para quem realmente precisa. É um instrumento social muito importante. Quando a pessoa tem fome, ela só pensa no prato de comida, não consegue pensar no que fazer. Se você supre isso, você faz com que a família consiga planejar seus caminhos. Vários países no mundo continuam investindo nisso”.

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