Crônica S/A – Exúbero

Vicente Sa

Já me perguntaram por que gosto tanto de falar de caminhadas em minhas crônicas. Sinceramente não sei. Talvez porque eu goste de andar pela cidade ou talvez porque a escrita seja, por si só, uma viajada sem bússola. E aqui tem mais uma que anda sozinha.

O certo é que certo dia, caminhando no final da W3 Norte e me encantando com os ipês amarelos que iluminam quem vai e que vem, parei em frente ao mais robusto deles e ao meu lado um outro homem, também vivido, me falou:- Exúbero. O compositor Sérgio Sampaio foi o primeiro a sentir e desmontar esta história que Brasília é uma cidade fria e não permite uma conversa entre dois desconhecidos.

Eu sei que é possível e talvez por conta do encantamento que a beleza nos proporciona, algumas vezes, nos tornamos de novo índios da mesma tribo. O que sei é que aquele homem me sentiu e iniciou a conversa com um termo que eu não conhecia: exúbero.Eu vinha, no meu caminhar tateante, me assombrando com a exuberância dos ipês amarelos. Eles parecem gritar sua cor ao sol, numa incontida necessidade de espalhar sua beleza. E aí, o homem idoso como eu, de um jeito tranquilo e não impositivo, vendo o que eu via, me diz: exúbero.Sou da geração que adora iniciar amizades em volta de uma mesa de bar, provavelmente por se sentir em casa, pois foi desse jeito que que conheci a maioria dos amigos que tenho. E assim, já que estávamos na 514, o convidei para trocarmos credenciais e talvez redigir um tratado de futura amizade no bar do Chicão., na 312.Tirando o boné vermelho e batendo na pala como a tirar uma coisa que eu não via, me confidenciou:

– Meu médico me recomendou não mais beber, mas anarquista como sou, mudei de médico e, se você não forçar o caminhar, irei contigo. Já nos primeiros passos, lado a lado, confidenciou:- Sempre que lia suas crônicas tinha vontade de encontrar Zeca Bahia e Clodo Ferreira, no Chicão.Neste momento, não por coincidência, que elas não existem na Asa Norte, um vento alegre choveu folhas seca e as fez desfilar no asfalto. Soube então que não era um homem que comigo falava, mas uma entidade. E como os leitores sabem e minha companheira desconfia, me mantive corajoso e caminhamos juntos naquele final de manhã, quase meio dia.Confesso que foi difícil, não andar devagar, que é assim que hoje ando, mas esperar chegar no Chicão, e só ai, quando pousada a segunda ampola sobre a mesa, indagar, com respeito, qual o seu nome e procedência. Nós da Asa Norte, nunca perguntamos o que a entidade quer, ele dirá, se quiser.Enquanto uma brisa rasteira, fazia dançar as folhas em volta da mesa, ele com um riso triste me falou:

– Eu, cronista, sou o orixá da lembrança, primo da morte e inimigo do esquecimento. Meu oficio é não deixar que a memória vire saudade e que a dor da ausência impeça a recordação dos que viveram ao nosso lado. O pior crime é matar o passado.Eu, no meio daquele torvelinho das folhas, senti o cheiro do assombro e, num gesto brasileiro de defesa, virei o copo de cachaça. O orixá vendo que eu já estava mais firme, me falou, desta vez, para minha alegria, com a voz do meu finado amigo, Zeca Bahia

:- Diga na sua crônica, que lembrança não dói nem é saudade e peça que seus leitores deem oportunidade a quem já se foi de os rever. A gente é igual o ipê, tá sempre perto, mas só surge na hora boa, Não fechem a alma pra gente, lembrança não é coisa à-toa.Depois disso ele se foi e eu fiquei com a conta, mas também com essa crônica e o recado que ele deu. E como diz Paulo Leminski, pra mim, valeu, Voltei pra casa me sentindo exúbero, mas minha companheira achou que eu estava amarelo igual um ipê. Fazer o quê?Desejar um bom domingo e deixar correr.

Vicente Sá

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