Crônica S/A-Passeio de jipe

Por Vicente Sá
Central de Jornalismo
26 de dezembro de 2021

Passeio de Jeep

Para Clodiana é Kleber

Assim que os galos, com seus cantos que se emendam, tiraram o dia da goela da madrugada, o Filósofo da Asa Norte e tia Walkiria, sempre elétrica ao volante, estacionaram o jipezinho amarelo e ordenaram que eu subisse.

  • Quero lhe apresentar três amigos que estão de passagem por Brasília. Avise à Lúcia que voltamos para o almoço de Natal, disse o FAN.
    Amigos são assim – invadem suavemente nossa vida – e, sem precisar explicar, nos conduzem pra onde devemos ir. Amigo é sinônimo de destino, tia Walkiria já me ensinara isso, há tempos.
    Na praça do Relógio, em Taguatinga, três altivos homens negros esperavam com suas bengalas brancas e seus óculos escuros. Nos apertamos no banco de trás e seguimos até os barracos de uma invasão já perto de Brazlândia.
    O mais velho me cutucou com o cotovelo e disse rindo:
  • Assim como o passo inventa o caminho e a sede cria a água, este menino, que acabou de nascer, com seu choro sem palavras, nos ensina a alegria da vida, a esperança. Acredite, ele sempre nasce por aqui, entre os que quase nada têm.
    No terreno ainda molhado da chuva, os três homens cegos nos guiaram até uma pequena morada de madeira. À porta, cada um tirou de sua sacola um presente e entregou, em silêncio, ao homem magro que veio nos receber.
    O primeiro trouxe uma semente. O segundo, uma nuvem pequena, e o terceiro, um prego.
    O homem sorriu e, com um gesto, nos convidou a entrar. Não entramos. Os três homens agradeceram, mas voltaram para o carro cantando uma canção que nunca mais vou ouvir de novo ou esquecer.
  • Em cada criança estão todas as crianças que já nasceram e ainda vão nascer, dizia a letra.
  • Na próxima vez, no ano que vem, traga, você também, um presente, pode ser um poema. Ele vai gostar, me disse o mais novo.
    Tia Walkiria me segurou pelo braço enquanto eles entravam no jipe. Depois, quando me soltou e eu subi no carro, não havia ninguém lá. Só um cheiro agradável de alfazema.
    Voltamos calados, a olhar para a estrada sem vê-la, cegos para qualquer coisa que não fosse o menino que não havíamos visto, mas que, sabíamos, vivia. De uma gota pequena dentro de cada um, uma imensa alegria se formou e nos encharcou a alma, senão para sempre, pelo menos até o ano que vem.
    Bom domingo.
    OS: o almoço foi uma delícia, eu até pensei em guardar um pedaço do pernil para sortear entre os leitores, mas um homem, em situação de rua, passou na chácara, pediu e levou uma quentinha bem recheada feita pela Lúcia. No próximo ano, quem sabe, caro leitor.
    Vicente Sá
    Ilustração de Guilherme Leão
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