Será a realidade, real? – Carlos Fernando Galvão

Por Carlos Fernando Galvão
Central de Jornalismo
15 de novembro de 2022

Quando o extraordinário se transforma em rotina, temos a revolução. Ernesto “Che” Guevara (1928-1967) – médico e revolucionário comunista.

Não raro, quando olhamos ao redor e observamos as pessoas, suas atitudes e as consequências do que foi feito, nos espantamos e comentamos que alguém ou que um grupo de pessoas parece ter perdido o contato com a realidade, não é? Qual realidade? A real, que se apresentou para nós e que exigiu uma tomada de posição de terceiros e nossa, mesmo, ao menos na teoria? A real que nos parecia diferente daquela que foi entendida por essa pessoa ou por esse grupo de pessoas e que as levou a realizar a ação com a qual não concordamos, por que nossa realidade era de cepa diferente? Ou a realidade que passamos a apreender apenas depois de uma atitude tomada e que nos levou a refletir sobre o que achávamos que, de fato, acontecia ou aconteceria? Ou a realidade… enfim, a que realidade estamos a nos referir quando fazemos a observação de que tal ou qual pessoa ou grupo estava fora da realidade? O que é real?
Realidade gera fato ou interpretação? Se você acha que existe uma única realidade que deve ser apreendida por todos, indistintamente, responderá que fatos são produtos da realidade. Contudo, se você, como eu, considerar que, a despeito de algumas coisas serem, efetivamente, inquestionáveis, ao menos no universo humano de vivência, há de concordar comigo que muito do que nos acontece é fruto de um conjunto tão complexo de fatores naturais, de fatores subjetivos e de fatores sociais que talvez, apenas, talvez, não exprima a realidade, mas tantas realidades quantas forem possíveis de serem interpretadas por esses seres conscientes chamados seres humanos. Nesta perspectiva, não existe uma realidade única, mas possibilidades de realidades e não necessariamente erradas: é bem possível que haja mais de uma realidade para um mesmo… vamos lá… fato. A dificuldade da vida está, precisamente, aqui.
O que acabei de argumentar leva, inevitavelmente, à conclusão de que a vida é diversa e essa é a riqueza de nossas existências. É perfeitamente possível que possa haver duas interpretações de realidade diferentes, opostas mesmo, e que ambas, de certo modo e em algum sentido, possam estar certas, porque tanto as motivações humanas que a tornaram uma realidade, quanto seus efeitos, ainda que possam levar a caminhos diferentes, podem ser legítimos e trazer boas consequências. Sermos diferentes não é ruim, as visões alternativas com as quais lidamos ao nos relacionar com os outros nos enriquecem, se tivermos respeito pela diversidade e se lidarmos com ela não como algo a ser eliminado, senão como um fator altamente benéfico por nos oferecer pontos de observação diferenciados e, assim, possibilitar-nos ações múltiplas. A vida impõe tantos desafios que insistir em um pensamento único entrava nossas ações. Afinal, com a homogeneidade de sentimentos e de pensamentos, tomamos apenas um único caminho.
E se o caminho escolhido não for bom? O que fazer?
Bem, não há receita pré-moldada, a partir da qual bastaria aplicar para o bolo não sair solado do forno. A vida é tentativa e erro e mais erramos do que acertamos, o que não deve nos desanimar. Thomas Edson (1847-1931) disse que não falhou (quando indagado se não ficou desanimado ao ter errado muito, antes de conseguir inventar a lâmpada elétrica), apenas teria descoberto mil maneiras que não funcionavam. Atitude positiva, autocorretiva, motivada, dedicada e persistente, perante a vida e seus percalços, isso é o que devemos ter para superar os desafios da vida e para nos superar. Não para entrar em uma competição destruidora com o outro, mas sermos melhores do que nós mesmos, apenas, e respeitando a diversidade da vida, fazendo dela um fator de regozijo e de aprendizado. É um erro e um desperdício transformar, a priori, o outro em inimigo, simplesmente porque ele não é “eu”. Vamos parar com superstição e quebrar esse espelho de Narcisos!
As realidades de vida podem não ser únicas e homogêneas podem ser tidas como fatos e fenômenos praticamente incontestáveis, se tornando, deste modo, passíveis de pouca ou nenhuma discussão sobre sua “realidade”, porquanto serem exato o que delas observamos ou serem de difícil negação em nossa “realidade mundana”. Por conseguinte, o que comumente chamamos de “realidade”, de algum modo e em certo sentido, não passa de laivos dispersos, embora não raro, conexos, de percepções fluidas de possibilidades de fatos e fenômenos. Em uma palavra, essas realidades são interpretações ou, se preferirem, representações.
Levando-se em consideração que o mundo, hoje, tem 7.5 bilhões de habitantes e, como diz o ditado popular, cada cabeça uma sentença, como compatibilizar e pactuar 7.5 bilhões de interpretações/representações de realidade?
Impossível que alguém imagine que haverá algo próximo a uma homogeneidade de sentimentos, de pensamentos e de ações, nesta Torre de Babel. Bem, alguns até imaginam e quando não conseguem que sua visão de mundo seja uníssona, apelam para conchavos, golpes, alienação, escravidão, mentiras, ditaduras e toda sorte de canalhices para obter sucesso em sua missão autodelegada de “salvar a humanidade”. Não obstante, há coisas que podemos e devemos fazer para que a pactuação ora mencionada tenha alguma eficácia real, por assim dizer. Não há “receita de bolo”, mas há elementos em comum a qualquer tentativa de resposta para a questão aqui colocada.
Inicialmente, temos que ter paciência e boa vontade para ouvir o que o outro tem a nos dizer, seja o que for, seja sobre o que for, sem que o julguemos antecipadamente. Depois, temos que procurar sentir um pouco do que o outro sente sobre o que nos foi dito, ainda que nos pareça bobagem, para que nos sintamos imersos no caldo emocional que levou o outro a dizer o que disse e a fazer o que fez (ou que está para fazer). Em seguida, temos que refletir sobre o foi dito, com a mente aberta, para que busquemos as coisas certas que nos foram ditas (ou as coisas certas que foram realizadas), o que, muitas vezes, há, mesmo nos piores ditos ou feitos; além disso, tomando esses cuidados, ficará mais fácil para que, em paralelo, identifiquemos as coisas erradas que nos foram ditas (ou que foram feitas), para que consigamos, com base em argumentos e não com pancadas, entender a situação.
A partir desta sequência de atitudes, devemos, se e quando for o caso, aderir ao que nos foi dito ou ao que foi realizado, mas de modo crítico (o que implica em concordância refletida e não em adesão a-crítica) ou, se e quando for o caso, mostrar, com base em argumentos respeitosos, ainda que muitas vezes calorosos, que nosso interlocutor, seja ele um indivíduo, um grupo de pessoas, uma empresa ou uma instituição pública, que o que foi dito e/ou feito, está equivocado. Por fim, com o respeito mútuo que deve acontecer, se todas as partes seguirem este roteiro ou algo parecido, a compatibilização das realidades vividas e percebidas poderá ser objeto de novas pactuações, subjetivas, coletivas e institucionais. Deste modo, as partes acharão pontos em comum a partir dos quais terão plenas condições de construir um coletivo justo, fraterno e democrático.
A elegância está na simplicidade, tanto quanto as grandes verdades, no mais das vezes, estão nas coisas simples da vida. As soluções simples assumem, quando atingidas, áreas de verdade e de realidade, que comporta sim, várias interpretações, mas que servem de base para muitas pactuações. Por exemplo, uma das equações mais verdadeiras, fantásticas e belas da física é, ao mesmo tempo, uma das mais simples; é a grande equação da Relatividade do físico alemão Albert Einstein (1879-1955): E = m.c2 (energia é igual a massa do corpo vezes a velocidade da luz ao quadrado). O extraordinário deve se tornar ordinário; a rotina criativa e benigna se torna revolucionária, não é dr.Ernesto?

Carlos Fernando Galvão, Geógrafo e Pós em Geografia Humana, cfgalvao@terra.com.br

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