Crônica S\A – Domingo pé de cachimbo

Vicente Sa

Antes que o leitor mais sabido me corrija, aviso que sei que a versão correta é domingo pede cachimbo. Entendo e respeito os pesquisadores de parlendas, mas, desde menino, imagino que, em um domingo qualquer, vou encontrar o meu pé de cachimbo, com vários deles pendurados e bem maduros. Me sentarei à sua sombra e ficarei observando a brisa a balançar seus galhos. Tal e qual a ilustração do meu neto, Guilherme Leão, este auxílio luxuoso das minhas crônicas.Eu sempre achei que o domingo pede e pode muitas coisas, como um passeio solitário numa praça, ou, se em família, a busca de uma cachoeira pouco frequentada. Talvez um piquenique na Água Mineral ou na grama da quadra mesmo. O domingo pede coisas calmas como uma visita a uma irmã que você não vê faz tempo, ou uma releitura, na rede, daquele livro gostoso que fez sua cabeça na adolescência.Os domingos também são muitos bons para ouvirmos os pássaros. É claro que os outros dias também são, mas domingo é especial. Não sei se vocês já notaram que eles se apresentam com mais entusiasmo, com as penas mais brilhantes e eu juro que outro dia vi alguns dos artistas, bicando os limões para refrescar a garganta e fazer uma melhor apresentação. Minha companheira diz que é porque domingo eles sabem que têm uma audiência mais atenta e relaxada e por isso capricham no espetáculo com voos e cantos mais ousados. Na minha memória, extremamente seletiva, os domingos são sempre claros e os da infância cheio de pessoas caminhando em ruas de terra vestindo roupas brancas e conversando alegres, numa coreografia em que contracenam com cachorros e jumentos mansos. Ao fundo, ouve-se Luiz Gonzaga e sua sanfona inquieta. Em Brasília, há alguns anos, havia os domingos de Concerto Cabeças e todos nós sentávamos na grama da 311 Sul para ouvir o imenso leque de músicos e poetas de Brasília numa ocupação pacifica e rica da nossa cidade. Um pequeno exercício de cidadania que quem viveu não esquecerá jamais.Tem também, é claro, o domingo de Carnaval que é completamente diferente dos outros do ano, mas deste falarei em outra crônica, pois é cheio de particularidades.Sou suspeito, pois nasci neste mês, mas dizem, e eu concordo, que os domingos de abril são os mais lindos e coloridos do Distrito Federal pois saímos das chuvas, mas ainda não chegamos na seca e o nosso quadradinho está verde e sorridente.Sinto que atualmente o domingo pede paz. Não só para as guerras da Ucrânia, Iêmen, Etiópia, Mianmar e Haiti, mas também, e principalmente, para a guerra não declarada no Brasil, travada pelo Estado contra os pobres, os negros, os povos originários, as mulheres e as pessoas trans. Essa guerra silenciosa que mata os jovens ou lhes rouba o futuro, e que outros brasileiros, ditos de bem, insistem em não ver, tem que ter fim ou corremos o risco de nos acostumarmos a ela. E aí, o leitor já sabe, na guerra, o primeiro que morre é o domingo.Vicente SáIlustração de Guilherme Leão

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Fonte Segura: Central de Jornalismo

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