Crônica S/A – Anjos, harpas e sandálias

Para Alex Silva

Por Vicente Sa

Antônio e Cláudio foram dois amigos que realmente viveram e exploraram todo o potencial da sua amizade. Nesta crônica eu explico: amigos de infância, Antônio e Cláudio eram unha e carne até o fim da adolescência, quando, por questões financeiras, pegaram rumos diferentes na vida. Antônio foi estudar odontologia e Cláudio veio para Brasília trabalhar. Isto, no final dos anos sessenta. Mas, adeptos que eram da filosofia de que a pessoa deve se aprimorar e sempre valorizar a vida, o seu dia a dia , combinaram, a partir dos anos oitenta, quando já estavam ambos estabelecidos, um como dentista, em Campinas, e o outro como alfaiate, na Asa Norte, que se veriam de tempos em temos para vivenciar a vida do outro.Faziam assim: Antônio vinha visitar Cláudio, se hospedava em sua casa e aí, durante três dias, fazia tudo o que o amigo fazia normalmente, menos os deveres conjugais, é claro. Tomava o mesmo café da manhã, sentava ao lado dele enquanto ele recebia os clientes e costurava as roupas, dava os mesmos passeios, tomava a mesma cervejinha e conversava um pouco no boteco ao final da tarde, jogava no bicho e participava das rodas de samba, coisa que nem precisava de esforço, pois os dois eram apaixonados por sambas antigos, os que hoje em dia chamam de raiz. Cito a paixão pelo samba porque foi ela que me uniu aos dois e nos fez amigos. Quando adolescente ouvi muitos sambas bons de Donga, João da Baiana, Sinhô, Ataulfo Alves, e toda aquela turma antiga na casa de Cláudio, na sua “vitrola de ouro”, como ele a denominava. Lá, numa destas visitas filosóficas, conheci o Dr. Antônio que, no consultório de um dentista amigo, cuidou dos meus dentes e me ensinou a tocar caixa de fósforo.Mas voltemos às visitas: no final do terceiro dia, o visitante sentava-se com o amigo e realçava a beleza que tinha sido viver cada momento da vida do outro. Falava do gosto do café e do ambiente agradável da casa, do carinho da mulher com ele, da alegria dos filhos e por aí ia, vendo-a pelos olhos do amigo. Qualquer ato que ele pudesse estar vendo como menor ou sem graça, o amigo o emoldurava com seu real brilho e sabor.Assim, esta era a ideia dos dois, o visitado não deixava de amar a sua vida.Era, como dizia Antônio, uma visita onde se dava uma nova pintura na casa e na vida, tornando as duas novamente bonitas aos olhos do morador e vivente.Seis meses depois, Cláudio visitava Antônio e repetia o ritual como o mesmo efeito benéfico.Fizeram isso a vida toda e viveram felizes até que a morte levou primeiro Antônio e há quinze dias, com um infarto fulminante, Cláudio. Recebi, na sexta-feira, quando passei por lá, sem saber de nada, a notícia e um bilhete que ele me escrevera no dia de sua morte. A mensagem dizia que ele estava sentindo que em breve também estaria indo e que não tinha medo, mas que estava, isto sim, animado para tentar, no outro mundo, reeditar o projeto de visitas que eles desenvolveram. – “Só espero que o Céu não seja só um bando de anjos de sandália tocando harpa, mas que tenhamos pouso e atividades diferentes, assim o projeto funcionará e continuaremos nos ajudando.”Por coincidência ou para mostrar que Cláudio estava mesmo falando comigo, enquanto eu lia o bilhete, o rádio da alfaiataria tocou o samba de Paulo Vanzolini em que fala de anjos, harpas e sandálias. Eu acreditei na hora. E você, caro leitor?

Bom Domingo!

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Fonte Segura: Central de Jornalismo

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