Passou da hora de impeachment de Bolsonaro começar, afirma criminalista

Por Augusto de Arruda Botelho
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Central de Jornalismo
Em 26 de Janeiro de 2021

Advogado criminalista, é cofundador do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa) e conselheiro da Human Rights Watch
[RESUMO] Apesar da atuação condenável na pandemia, autor vê dificuldade para responsabilizar Jair Bolsonaro no Tribunal Penal Internacional e obstáculos da Procuradoria-Geral da República para acatar representações por crime comum. Criminalista defende que comportamentos do presidente configuram crime de responsabilidade e que não faz sentido esperar situação se agravar.

Um impeachment não pode ser o terceiro turno de uma eleição. Não se retira do cargo por meio desse processo quem foi eleito pelo voto e em determinado momento passou a fazer uma má gestão. O impeachment também não serve para afastar aquele candidato em quem não votamos e que, portanto, em tese não apoiamos desde a sua posse.

Seja qual for a razão para iniciativas nesse sentido —a prática de um crime de responsabilidade ou de um crime comum— é essencial que antes de mais nada ela seja juridicamente plausível, cabível.

Lembremo-nos dos traumas causados por dois impeachments realizados na história recente do nosso país. Não podemos banalizar essa medida extrema que é retirar do cargo uma pessoa que ali está pela representação mais clara de uma democracia: o voto.

Presidente Dilma empossa o ex-presidente Lula como ministro da Casa Civil na manhã desta quinta (17); menos de duas horas depois da posse de Lula como ministro, uma decisão da Justiça Federal de Brasília determinou a suspensão da nomeação do ex-presidente como ministro
Presidente Dilma empossa o ex-presidente Lula como ministro da Casa Civil na manhã desta quinta (17); menos de duas horas depois da posse de Lula como ministro, uma decisão da Justiça Federal de Brasília determinou a suspensão da nomeação do ex-presidente como ministro. Alan Marques – 17.mar.2016/Folhapress/


À noite, em São Paulo, manifestantes ocupam a av. Paulista e motoristas fazem buzinaço em comemoração à decisão do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), de aceitar o processo de impeachment
À noite, em São Paulo, manifestantes ocupam a av. Paulista e motoristas fazem buzinaço em comemoração à decisão do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), de aceitar o processo de impeachment. Joel Silva – 02.dez.2015/Folhapress/

O então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), em seu gabinete; ele aceita pedido de impeachment contra Dilma Rousseff (PT) no dia 2 de dezembro de 2015. Ele chantageava o Planalto, apontando que acataria o pedido de impeachment caso os deputados do PT no Conselho de Ética da Câmara decidissem autorizar seu processo de cassação, o que aconteceu

Aquele que ocupa um cargo público de relevância, como o de presidente da República, está sujeito também a ser denunciado e julgado em tribunais e organismos internacionais. Importante mencionar que nessa situação deve-se observar sempre o princípio de que tais cortes precisam ser instadas a julgar quando a Justiça do país, diante de crimes, permanece inerte.

Feitas essas observações, vamos voltar nosso olhar para o atual caso brasileiro e a situação de Jair Bolsonaro na Presidência.

Há contra ele cerca de 60 pedidos de impeachment feitos pela prática de crimes de responsabilidade. Há também diversas representações apresentadas à PGR (Procuradoria-Geral da República), afirmando que o presidente, no exercício de seu cargo, cometeu crimes comuns. Por último, há pelo menos quatro solicitações em organismos internacionais para que Bolsonaro seja ali também investigado.

Começaremos por essas últimas.

Fundado em 1998 por um tratado internacional, o Estatuto de Roma, o TPI (Tribunal Penal Internacional) é conhecido por ser rigoroso na aceitação das denúncias. A rejeição dos pedidos chega a 90%. Os critérios envolvem não apenas a opção pela prevalência local no julgamento dos fatos, mas também na restritiva interpretação do que pode ou não ser considerado um crime contra a humanidade.

Especialistas brasileiros divergem sobre a possibilidade de responsabilização do presidente Bolsonaro diante de sua inconsequente e irresponsável condução do país durante a pandemia da Covid-19. Para alguns, o desrespeito às medidas sanitárias preventivas e aos protocolos conhecidos de saúde não pode, no caso brasileiro, ser caracterizado como uma política de Estado, mas sim como um ato isolado do mandatário, razão pela qual faltaria um dos requisitos para afetar a competência do Tribunal Internacional.

“Pelo que parece, tem uma família [de brasileiros] na região onde o vírus está atuando. Não seria oportuno a gente tirar de lá [China], com todo o respeito. Pelo contrário, agora não vamos colocar em risco nós aqui por uma família apenas.” (28.jan)
“Pelo que parece, tem uma família [de brasileiros] na região onde o vírus está atuando. Não seria oportuno a gente tirar de lá [China], com todo o respeito. Pelo contrário, agora não vamos colocar em risco nós aqui por uma família apenas.” (28.jan). Jason Lee/Reuters/
“Tem a questão do coronavírus também que, no meu entender, está superdimensionado, o poder destruidor desse vírus. Então talvez esteja sendo potencializado até por questão econômica, mas acredito que o Brasil, não é que vai dar certo, já deu certo.” (9.mar.)
“Tem a questão do coronavírus também que, no meu entender, está superdimensionado, o poder destruidor desse vírus. Então talvez esteja sendo potencializado até por questão econômica, mas acredito que o Brasil, não é que vai dar certo, já deu certo.” (9.mar.). Sérgio Lima-20.mar.2020/AFP/

“Lamento cada morte, seja qual for a sua causa, como a dos três bravos policiais militares executados em São Paulo”, dia 8 de agosto, quando o Brasil passou das 100 mil vítimas de coronavírus.

Para afirmar que alguém cometeu um crime, há requisitos formais que precisam ser atendidos. E, para muitos autores, por mais que, volto a dizer, a postura de Bolsonaro em todos os aspectos tenha sido criminosa, ele pode não ter cometido tecnicamente um crime.

Não me filio àqueles que entendem que não há elementos suficientes para investigar o presidente pela prática de crimes comuns. Apenas faço essa ressalva para constatar que, além do componente político (o que, sinceramente, quando se trata da PGR nem sequer deveríamos tratá-lo), temos um componente técnico a ser enfrentado.

Portanto, se eu pudesse prever uma possível forma de afastamento do presidente durante seu mandato, essa previsão não passaria por um processo pela prática de crime comum.

Resta, por último, tratar do afastamento pela prática de crimes de responsabilidade. E aqui começo com uma indagação: é crível imaginar que, dos 61 pedidos feitos, nenhum deles encontre o mínimo fundamento? É crível pensar que após dois anos de um governo com um sem-número de conflitos, falas e atos atentatórios à nossa ainda jovem democracia não haja uma justificativa para se iniciar um processo de afastamento?

Mais ainda, diante da conduta do chefe do Poder Executivo no combate à pandemia, marcada por negacionismo à ciência, por incentivo às aglomerações e a invasões de hospitais, pela recomendação de drogas cuja eficácia não é comprovada e em alguns casos é contraindicada, pelo boicote ao uso de máscaras, pela insistência na sugestão de um inexistente tratamento precoce e, mais recentemente, pela falta de ação efetiva e emergencial para tratar da falta de oxigênio em Manaus —diante de tudo isso, não é possível afirmar que já há de sobra elementos para o início de um processo de impeachment?

Essa forma de afastamento tem como base a prática de um crime de responsabilidade que, em lei própria, caracteriza-se por condutas ora bastante específicas, ora mais genéricas. É absolutamente forçoso dizer que o presidente incidiu em várias delas, a começar por se portar de modo incompatível com a dignidade, honra e decoro do cargo que ocupa.

Edvaldo Braga (dir.) observa enquanto trabalhadores municipais de saúde examinam o corpo de sua mãe Lacy Braga de Oliveira, que morreu em casa aos 84 anos, em meio à pandemia, em Manaus
Edvaldo Braga (dir.) observa enquanto trabalhadores municipais de saúde examinam o corpo de sua mãe Lacy Braga de Oliveira, que morreu em casa aos 84 anos, em meio à pandemia, em Manaus. Reuters/12.jan.2021 – Bruno Kelly –
Agente municipal de saúde examina corpo de Rocimar Fernandes dos Santos, que morreu em casa aos 43 anos após relatar sintomas compatíveis com a Covid-10, em Manaus
Agente municipal de saúde examina corpo de Rocimar Fernandes dos Santos, que morreu em casa aos 43 anos após relatar sintomas compatíveis com a Covid-10, em Manaus. Reuters/12.jan.2021 – Bruno Kelly

Parentes de pacientes internados no Hospital 28 de Agosto reagem, em meio à pandemia de Covid-19, em Manaus

A falta de decoro de Jair Bolsonaro no cargo não se deve a um ato isolado; é aquilo que o professor da USP Rafael Mafei menciona como “um padrão comportamental que pode levar à conclusão inequívoca de que o Presidente não aceita os limites da Constituição”.

O componente jurídico para se iniciar um processo de afastamento está mais do que preenchido, está evidente, sob qualquer ótica. Falta ainda o tal componente político, que infelizmente poderá florescer o aumento cada vez maior no número de mortes causadas pela pandemia.

O afastamento de um presidente não pode estar condicionado ao agravamento de uma tragédia. Passou da hora, e todos os requisitos legais foram preenchidos, de um processo de impeachment começar.

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