Crônica S/A-Histórias da Pandemia 2-Duvideodó

Por Vicente Sá
Ilustração: Guilherme Leão
Central de Jornalismo
11 de abril de 2021

Reza a lenda que algumas almas estão ligadas por laços indissolúveis e que, independentemente das distancias e dos acidentes da vida, o Destino findará por uni-las em algum pedaço deste caminho que é a existência.
Outras já nascem e crescem ligadas de uma forma que parece impossível assim não ser. Este é o caso dos dois primos Alberico e Custódio, conterrâneos meus, lá de Pedreiras, que, desde pequenos, viveram uma espécie de acirrada competição, que começou como uma brincadeira mas se tornou um caso sério e os acompanhou a vida inteira.
A brincadeira era comum na minha infância, em toda a cidade, e a chamávamos de ‘duvideodó’. Consistia em fazermos uma coisa difícil e desafiarmos o colega a repetir o nosso feito. Assim, subíamos em uma alta mangueira pra colher uma fruta e desafiávamos o amigo com um grito: – Duvideodó. E, se ele aceitasse a provocação, tentaria refazer o nosso percurso e colher, também, uma manga.
Talvez por serem primos e muito parecidos, não só fisicamente, como na personalidade forte, Custodio e Alberico transformaram a brincadeira numa disputa pessoal em busca, talvez, de uma individualidade que achavam necessária. Assim, cresceram a gritar “duvideodó” um com o outro, em um desafio continuo que os impediu de enxergar os outros meninos, a infância e, talvez, até mesmo a vida como algo solidário e compartilhado. Passaram a viver em função de sua rixa e a imaginar cada vez mais audaciosas e quase impossíveis peripécias a serem repetidas pelo adversário, pois já era assim que os primos se enxergavam.
A coisa ficou séria e perigosa quando eles pularam do alto da ponte que cruza o rio Mearim, gesto que só os adultos mais atléticos tinham a coragem de executar. Foi aí que o padre Gérson foi chamado para interferir, o que queria dizer acabar com aquilo, antes que uma coisa grave acontecesse com um dos dois.
Depois de receberem uma sonora bronca em horários diferentes na igreja com as portas abertas, para que a cidade soubesse que o pastor de suas ovelhas estava cumprindo seu dever, eles pareceram se emendar e não foram mais percebidos em suas disputas.
A cidade, mais uma vez enganada, respirou aliviada. Mas, em suas intimidades, eles reforçaram sua disputa e continuariam assim, mesmo depois de adultos. Nós todos fingíamos que não notávamos, mas quando Custódio largou os estudos e botou um pequeno comércio próximo à casa de sua mãe, logo, três meses depois, Alberico também deixou a escola e abriu a sua pequena loja de sapatos. Os dois também se casaram com uma diferença de dias e até filhos suas esposas tiveram na mesma semana.
Eu morava em Brasília e, já homem, voltei a Pedreiras de férias. Encontrei-me com Custódio, com quem tinha mais intimidade, e, num súbito acesso de sinceridade, perguntei por que eles não largavam aquela disputa. E ele, abaixando a cabeça como se um peso a empurrasse para baixo, confessou que bem que queria, mas não via como. Ia parecer que ele estava se acovardando e isso ele não iria dar de presente ao seu primo, nunca.
Tentei, ainda nessas férias, como um bom samaritano, mobilizar a cidade para que déssemos um fim àquela disputa, mas a cidade, na sua vida modorrenta e sem novidades, parecia ter na rivalidade dos primos um assunto para alimentar, eternamente, suas rodas de conversa.
O certo é que assim a vida deles e da cidade seguiu. Um entrou para a política, o outro também, um virou religioso, o outro seguiu seus passos e até parecia que a vida gostava de participar e incentivar a disputa, pois os netos chegaram com dois dias de diferença, e eles comemoraram com festas e foguetório, em suas casas construídas pelo mesmo arquiteto e com o mesmo número de quartos e janelas.
Soube que, já velhos, ensaiaram uma retirada da disputa, mas os padrinhos contratados para ajudar na empreitada, orgulhosos demais de suas funções, tomaram partido, exigindo do outro um reconhecimento de derrota e assim a conversa terminou sem resultado.
Anteontem Custódio se foi, vítima da Covid, e ontem, também por conta da danada, foi a vez de Alberico. Madrugada de hoje eu sonhei com os dois se encontrando comigo sobre a ponte onde a disputa começou a ficar acirrada. Lá, no vento forte que soprava, eles riram de si mesmos, antes de se despedirem em um último mergulho num rio que passava em baixo e não era o Mearim, mas outro mais claro e bonito. Talvez o rio da infância ou do tempo onde eles poderiam começar de novo, desta vez sem rusgas. Saltaram juntos, libertos, enfim, das tolas amarras da disputa.

Vicente Sá
Ilustração de Guilherme Leão

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