Na Fundação Saúde, órgão do governo do Rio responsável pela gestão das unidades de saúde do estado, o que era para ser exceção virou regra: desde 2021, contratações consideradas emergenciais — feitas pela instituição com dispensa de licitação e que deveriam, pela lei, ser realizadas somente em caráter excepcional — superam as realizadas com concorrências públicas. Este ano, a soma do valor dos contratos assinados sem licitação pelo órgão é três vezes maior do que a decorrente de pregões eletrônicos.
De acordo com dados do Sistema Integrado de Gestão de Aquisições (Siga) compilados pelo GLOBO, até outubro, a fundação assinou 292 contratos “emergenciais” com valores somados que ultrapassam R$ 911 milhões; já as 60 contratações com pregão eletrônico totalizam R$ 302 milhões. No ano passado, a discrepância foi ainda maior: 618 contratos com valor global de R$ 1,6 bilhão foram assinados sem licitação, ante apenas 139 decorrentes de concorrências, no valor de R$ 372 milhões.
Além de contratações sem concorrência, também explodiram os gastos da Fundação Saúde sem cobertura contratual, os Termos de Ajustes de Contas (TACs). Em 2024, segundo levantamento do GLOBO com base no Portal da Transparência, R$ 691 milhões foram pagos pelo órgão após a execução do serviço, mediante apresentação de nota fiscal, sem que as empresas recebedoras sequer tivessem contrato com o governo. Esse valor cresceu exponencialmente nos últimos anos: em 2021, por exemplo, pagamentos via TACs chegaram a R$ 68 milhões; em 2023, a R$ 286 milhões; e mais do que duplicaram este ano, somente até outubro.
Grupo de trabalho
Questionada sobre o volume de contratos assinados sem licitação, a Secretaria estadual de Saúde informou que “o aumento da capacidade de gestão da Fundação Saúde foi de quase 490% no pós-pandemia” e que a transição das organizações sociais (OSs) para a fundação “exigiu a contratação, de forma emergencial, de fornecedores e prestadores de serviço, para que não houvesse descontinuidade da assistência à população”. Acrescentou que um grupo de trabalho foi formado para rever os processos de contratação e aperfeiçoar o controle interno, o que contribuirá para a redução dos contratos emergenciais em vigor”.
O contrato de emergência é um recurso legal na administração pública para manter a continuidade de um serviço, mas deve ser fundamentado, ter caráter excepcional e não ser prolongado. A política de contratações da Fundação Saúde é alvo tanto de auditorias do Tribunal de Contas do Estado (TCE) quanto de críticas de especialistas. Um relatório produzido pelo órgão em abril deste ano aponta que o volume de contratos sem licitação é “consequência da falta de planejamento, desídia ou má gestão”. O texto observa que “o ato de dispensa de licitação se trata de um recurso alternativo à disposição do gestor público para manejar excepcionalidades. No entanto, o administrador da Fundação Saúde utilizou-o como regra a ser aplicada para efetuar as contratações”, afirmam os auditores do TCE no documento. Para Mário Fernando Rodrigues Junior, coordenador do curso de Tecnologia em Gestão Hospitalar do Instituto Carlos Chagas, a realização de licitações ajuda a garantir a moralidade nas contratações.
— Jamais aceitei celebrar contratos de emergência com o poder público porque essa prática abre margem para irregularidades, para que se burle o sistema. No Rio, as coisas foram se avolumando até explodir no caso dos transplantes — diz Rodrigues Junior, citando o caso do laboratório PCS Saleme, investigado pela emissão de laudos que culminaram na infecção de seis transplantados por HIV. A empresa recebeu quase R$ 10 milhões da Fundação Saúde, desde 2022, em contratações sem licitação.
Criada em 2007 como alternativa para contratar profissionais e comprar insumos de forma mais rápida do que na administração direta, a Fundação Saúde ganhou estatura a partir de 2020, durante a pandemia de Covid-19, em meio a uma crise provocada por denúncias sobre irregularidades na construção de hospitais de campanha pela OS Iabas. O episódio culminou com o impeachment do então governador Wilson Witzel e a aprovação de uma lei que obriga o estado a assumir todas as unidades de saúde que eram administradas por OSs — assim, a fundação acabou absorvendo, gradativamente, a gestão de 25 UPAs e 26 hospitais e institutos.
O caso do PCS Saleme trouxe à tona irregularidades nas contratações sem licitação da Fundação Saúde que já estavam na mira do TCE: entre os fornecedores que receberam pagamentos do órgão nos últimos anos, estão empresas com ligações familiares com funcionários da Secretaria de Saúde ou cujos sócios ocupam cargos na própria fundação. O PCS Saleme, por exemplo, tem como sócios Walter e Matheus Vieira, respectivamente tio e primo do ex-secretário de Saúde Doutor Luizinho (PP), que chefiou a pasta de janeiro a setembro de 2023 e hoje é deputado federal.
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Um dos casos investigados pelo TCE é o da médica Sallen Lopez de Souza Ferraz, então diretora da UPA de Realengo. Seis meses após ser nomeada, ela assinou, em nome de sua empresa, a Bernasf Serviços de Apoio à Gestão de Saúde, um contrato emergencial de R$ 3,4 milhões, para prestar serviços médicos na UPA de Santa Cruz. Entre TACs e um contrato emergencial com a fundação, o valor total pago à empresa chegou a R$ 5,4 milhões.
— Esses contratos ferem os princípios da moralidade e impessoalidade. São ilegais. Ninguém pode ao mesmo tempo ser dono de empresa, trabalhar no setor público e fornecer para o órgão em que presta serviço — diz o advogado Hermano Cabernite, especializado em direito administrativo.
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Já Eliane do Nascimento Pereira Issa foi escolhida, em setembro de 2022, para dirigir o Hospital Regional Gélio Alves Faria, em Barra de São João, na Região dos Lagos. Dois meses antes, como sócia-administradora da Issa Semedic Ltda, tinha assinado um contrato sem licitação de mais de R$ 7 milhões com a fundação para fornecer profissionais de saúde para as UPAs de Bangu e Irajá. A partir daí, foi uma sucessão de 13 TACs, num total de R$ 16 milhões.
Também foram descobertos, durante a auditoria, os casos de Alexandre Rodrigues de Souza Soares, ex-diretor da UPA da Maré, que recebeu R$ 6,5 milhões em 2022 em contratos emergenciais entre a fundação e sua empresa, a Teraphos Serviços Médicos, e de Fellype Rodrigues Mendonça, que dirigia a UPA de Cabuçu, em Nova Iguaçu, quando sua firma, a HJM Serviços Médicos, assinou contratos emergenciais e TACs com o estado que ultrapassaram R$ 16 milhões.
Conexão Baixada
Um traço em comum foi detectado pelos auditores do TCE nesses casos de médicos que atuavam dos dois lados do balcão: além de terem ocupado cargos na Fundação Saúde, Sallen Ferraz, Eliane Issa, Alexandre Soares e Fellype Mendonça eram médicos contratados da Secretaria de Saúde de Nova Iguaçu. Principal base eleitoral de Doutor Luizinho, o município da Baixada Fluminense também está intimamente ligado à carreira do diretor da Fundação Saúde, João Ricardo da Silva Pilotto. Nomeado para o cargo em janeiro de 2016, na primeira passagem de Luizinho como secretário estadual de Saúde, Pilotto dirigiu, por dois anos, o Hospital Geral de Nova Iguaçu (HGNI), que também teve à frente o ex-secretário.
Procurada, Sallen Ferraz afirmou que se colocou à disposição do TCE através de seus advogados e afirmou que “os vínculos empregatícios estabelecidos eram compatíveis, obedecendo à legislação e fielmente cumpridos”. Já a HJM Serviços Médicos afirmou, em nota, que “não houve irregularidade, uma vez que todos os contratos foram firmados nos devidos termos legais”. Os demais citados não foram localizados.
Fonte: Luiz Ernesto Magalhães e Rafael Soares de OGlobo